A Regra do CEO
Antes de tudo, existiam regras. Não escritas, não ditas — apenas entendidas.
Acordar às seis. Café coado forte, duas colheres de açúcar para mim, nenhuma para ele. Penteado de escola às seis e quarenta, o elástico rosa que Clara insiste em escolher mesmo quando eu proponho o amarelo. Beijo na testa dela, beijo de canto em Arthur, celular virado para baixo na bancada. Trânsito até o colégio, retorno, lista de compras, máquina de lavar girando como um coração obediente. A casa tinha um ritmo que me cabia como roupa feita sob medida. Era confortável. E silenciosa.
Clara tem quatro anos e um riso que ocupa a sala inteira. Ela chama as meias de “luvas de pé” e guarda pedrinhas no bolso do uniforme porque “as pedras precisam passear”. Às vezes, no meio da tarde, me pergunta por que a lua aparece cedo no céu azul. Eu respondo que todas as coisas têm seus próprios horários — e quase sempre acredito. Outras vezes, apenas abraço, e isso basta para nós duas.
Arthur tem trinta e dois, os cabelos sempre milímetros além do corte perfeito, e a pressa profissional de quem vive correndo atrás de um relógio que nunca se rende. Ele fala da empresa como se a empresa fosse um animal de estimação exigente, faminto, valioso. “Hoje a Prado & Ferraz fecha um contrato grande”, ele diz, os olhos acesos — e eu preparo o jantar favorito dele como se pudesse, de algum modo, abençoar a conquista com um molho bem apurado. À noite, quando a casa dorme, ele lê relatórios no tablet, a luz branca acendendo paredes e sombras. Eu aprendi a chamar isso de “dedicação”. É uma palavra bonita. Redentora. Quase sempre funciona.
A rotina nos manteve de pé por anos. Com a chegada de Clara, virei porta, abrigo, bússola. Não senti falta de um crachá, não imediatamente. Havia escola, vacinas, febres de madrugada, cadernos de atividades que vinham com adesivos para colar. Havia também um casamento que pedia manutenção discreta — engraxar as dobras do cotidiano, aparar os silêncios, refazer promessas sem dizer “eu te prometo” de novo. Aprendi a cozinhar risotos que não grudam, a escolher flores que duram mais no vaso, a trocar palavras ásperas por meias-verdades dóceis. A casa ficava bonita assim, com a poeira escondida sob o tapete.
Tenho uma memória específica, um quadro inteiro: é manhã de terça, Clara desenha um sol com nove braços enquanto segura a língua entre os dentes — concentração séria de artista — e Arthur, de paletó, sorri para ela antes de sair. “Traz um abraço do tamanho do elevador, papai!”, ela pede, sem levantar a cabeça. Ele ri, promete que traz, e me dá um beijo leve, tão leve que quase erra a pele. O cheiro do perfume dele fica na cozinha por alguns segundos. Depois, só o barulho da porta e o silêncio de uma casa que volta ao seu ar de serenidade treinada.
No noticiário da televisão, uma matéria sobre mercados e fusões. A jornalista pronuncia um nome como quem aponta um farol: Valentim Holdings. Uma imagem de arquivo mostra um homem alto descendo os degraus de um auditório, microfones acesos, o rosto indecifrável de quem está acostumado a comandar a própria sala. Ouço “Heitor Valentim” e, por um instante que não chega a ter peso, penso na palavra poder. Não no poder como brilho oco de manchete, mas como estrutura, como tijolo. Penso nas regras que constroem prédios e empregos e dias. Troco o canal. Lavo a louça. A água morna devolve a cozinha ao seu habitat natural.
À noite, depois do banho com cheirinho de lavanda, Clara pede que eu conte a história da borboleta que tinha medo de altura. Invento variações desde o nascimento dela. A borboleta chama Dora, e Dora gosta de empurrar nuvens com a cabeça. Clara ri, me interrompe, corrige meu enredo com a convicção dos quatro anos. “Mamãe, as nuvens têm porta?” “Têm”, respondo, “mas é uma porta de vapor, por isso ninguém vê.” Ela aceita. Adormece com os dedos enroscados no meu cabelo, como fazia quando era bebê. Fico olhando o rosto dela por minutos demais, a respiração miúda puxando e soltando o ar como se ela soprasse um balão invisível.
No corredor, a tela do celular de Arthur acende e apaga. Uma notificação de e-mail, outra do calendário, outra que não reconheço pelo ícone. Ele está no escritório, a porta entreaberta, a postura inclinada para frente como se tivesse que alcançar uma palavra que escapa. “Volto já”, digo, sem entrar. Ele assente sem olhar. Aprendi que há horas em que a sua atenção é um país com visto restrito.
A felicidade — se era isso — tinha gosto de coisa mantida. As contas em dia, o desenho de Clara na geladeira, o vinho aberto na sexta. Eu achava bonito o equilíbrio. Achava justo. Tinha orgulho de saber onde ficava cada objeto da casa, de entender a temperatura perfeita da água para o café que não amarga, de ter uma criança que confia em mim para perguntar sobre a lua e as portas de vapor. Às vezes, no entanto, uma sombra passava. Não era ciúme ainda — chamemos de pressentimento. Era como encontrar uma fenda muito fina numa parede recém-pintada. Você precisa inclinar a cabeça e, ainda assim, não tem certeza do que viu.
Arthur começou a chegar um pouco mais tarde. Nada dramático. Trinta minutos, quarenta. Às vezes culpava o trânsito; outras, o “cliente indeciso que só assina se for convencido três vezes”. Eu colocava o jantar em fogo baixo, esticava a conversa com Clara até a hora de dormir, e ele chegava já no fim, cheirando a ar de rua e urgência. “Desculpa, amor”, dizia, e eu respondia que estava tudo bem, porque muitas coisas estavam, de fato, bem. Mas a fenda continuava lá, tão fina que só um tipo de luz evidencia.
No domingo, fomos ao parque e tiramos uma foto que ficou perfeita: Arthur segurando Clara no alto, os braços dela abertos como asas de Dora, e eu, ao lado, olhando os dois com uma expressão que — vi depois — eu não costumava me dar. Parecia gratidão. Ou defesa. Publiquei nas redes com uma legenda qualquer e, naquela noite, adormeci com a sensação de que certas imagens funcionam como contratos silenciosos. A gente assina sem ler.
As regras invisíveis que sustentam uma família são feitas de coisas pequenas: horários, expectativas, versões polidas da verdade. Ninguém ensina, mas todo mundo aprende. Eu aprendia todos os dias. A regra de não mexer no celular do outro. A regra de não insistir quando o tom de voz mede a distância. A regra de sorrir na foto de domingo. A regra de desenhar um futuro sem pedir ao presente que se explique.
Se hoje eu pudesse voltar àquela terça de sol com nove braços, talvez eu dissesse a mim mesma: observe os detalhes. Não só os grandes acontecimentos que ganham legenda, mas aqueles que se escondem nas bordas — o toque de um botão que coloca o telefone em silêncio antes de um abraço, o olhar que não chega a encontrar o seu, a promessa que dobra uma esquina de última hora. Talvez eu dissesse: as fendas não surgem; elas se revelam.
Não revelo essa história para denunciar um casamento ruim. Por muito tempo, ele foi bom. Foi casa. Foi festa de aniversário com bolo de chocolate e vela torta. Foi sábado de chuva com filme repetido e cobertor compartilhado. Foi também, como tantas coisas, feito de pactos que se quebram sem fazer barulho. O que veio depois — o que quebraria, o que se ergueria — eu ainda não sabia. Ainda não conhecia o peso exato da palavra poder nem o nome de quem, um dia, colocaria minhas certezas diante de um espelho.
Naquela noite específica, Clara dormiu cedo, Arthur disse que precisava revisar um documento no escritório e eu fiquei na sala, ordenando pecinhas de montar que sempre voltam a se perder. A televisão, no volume baixo, repetiu o nome que eu já tinha ouvido de manhã — Valentim. Fechei os olhos. Senti, por um segundo, que minha vida cabia inteira na palma da mão, e que bastava fechá-la com força para que nada escapasse.
Então, abri a mão. E, sem perceber, quebrei a primeira de todas as regras: a do silêncio.
Foi quando comecei a ouvir, de verdade, aquilo que há muito tempo tentava falar comigo.
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Atualizado até capítulo 47
Comments
Sandra Camilo
adorei o capítulo autora linda e fotos deles por favor mais capítulos tb
2025-09-06
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Bruna Chaves
Vanessa a capa ja tem a foto deles
2025-09-06
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Vanessa Brunner Milantonio Silva
fotos
2025-09-06
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