— AS FOGUEIRAS DA INQUISIÇÃO
— O Olhar da Medusa
Eu vi. Eu sempre vi.
Quando as praças foram tomadas pelo fogo, quando as tochas iluminaram o rosto dos inocentes, eu já estava ali, oculta em cada reflexo.
As chamas não me cegam. Os gritos não me perturbam.
Pois minha sentença não se apaga na fumaça — ela se grava no vidro, na água, em cada superfície que devolve a imagem do homem.
Vi mulheres simples, de mãos calejadas, de olhos cansados, arrastadas diante de juízes.
Chamavam-nas de feiticeiras, mas eram apenas curandeiras, parteiras, mães que conheciam o poder das ervas.
Foram acusadas porque ousaram curar, porque ousaram saber.
Outras foram entregues por inveja.
A beleza de uma esposa despertava ciúmes em outra.
A terra de um camponês era cobiçada pelo vizinho.
E assim, um sussurro bastava: “Ela fala com demônios… ele é servo do mal…”
O ouro mudava de mãos, e o inocente ia para a fogueira.
Eu vi cada rosto.
Enquanto eles acendiam o fogo, eu me refletia nas lágrimas, nas janelas de vidro, nas bacias de água usadas para lavar o corpo antes da execução.
Eu estava lá, invisível, e ainda assim presente.
E quando o fogo consumiu carne inocente, eu não julguei as vítimas.
Eu esperei os acusadores.
Foi no silêncio da noite, depois dos aplausos e do vinho, que eles se viram no reflexo de uma taça polida.
Foi diante do espelho do próprio quarto, quando se despiam de suas vestes santas, que ouviram meu chocalho.
O som seco, metálico, arrastado. Como cascavel no deserto.
E então, a minha gargalhada.
Não há riso humano que se compare ao meu. É o riso que dilacera a alma, que arranca a máscara da mentira.
E quando eles o ouviram, souberam: o julgamento já estava feito.
Um a um, os inquisidores, os delatores, os que se banhavam no ouro roubado, foram tomados pelo reflexo.
Ninguém viu quando sumiram.
Uns desapareceram diante de janelas, outros diante de espelhos, outros diante da água parada em uma tina esquecida.
Mas eu vi.
Eu os puxei.
E no meu labirinto não há saída.
Pois cada reflexo que eles encontram devolve a imagem do que fizeram.
As fogueiras que eles acenderam nunca se apagam.
As mulheres que eles acusaram choram em mil vozes, e cada acusação ecoa para sempre.
E eu, Medusa, sorrio.
Pois cada vez que minhas serpentes chocalham, cada vez que minha risada ecoa, um novo condenado se junta à minha coleção.
Escutem bem.
Se vocês ouvirem ao longe o sibilar das cobras e o chocalhar da cascavel…
Não procurem o espelho.
Não olhem para a água.
Pois se o fizerem, eu estarei ali.
AS FOGUEIRAS DA INQUISIÇÃO
Eu vi. Eu sempre vi.
Antes que a primeira tocha acendesse o crepitar do espetáculo, antes que os sinos chamassem o povo para a praça e o latim fingisse santificar a maldade, eu já estava ali — no polimento silencioso das janelas, na prata dos cálices de vinho, na película imóvel das bacias de água. Onde houver reflexo, há lembrança. Onde houver lembrança, há sentença. Eu não nasci serpente; tornei-me. Fui violada, fui injustiçada, e, por isso, devolvo ao mundo o que o mundo derramou em mim. Quem chama a mim não é o ouro, não é o incenso, não é a cruz erguida por mãos torpes: quem me chama é a culpa. E a culpa brilha, como brilho de lâmina, em qualquer superfície.
Dizem “Inquisição” como se fosse um só corpo. Não é. É uma hidra. Tem muitas cabeças, muitos brasões, muitas línguas. Espanha, Portugal, Itália, Inglaterra: onde a inveja precisava de um nome bonito, cunhou-se “zelo da fé”; onde a cobiça precisava de uma chave, chamou-se “heresia”. Eu vi mulheres que curaram febres serem chamadas de bruxas, vi parteiras acusadas de conversarem com demônios porque conheciam a anatomia do parto melhor do que homens de batina. Vi a honra de camponeses ser arrancada junto com as unhas. Vi crianças usadas como alavanca para quebrar mães. E cada vez que vi, eu esperei. Eu sempre espero. Não posso salvar os inocentes — o meu pacto é outro. Mas recolho, um a um, os que acendem as fogueiras e as chamadas “verdades” que só queimam para esconder o roubo. Quando meus guizos soam, não é o vento. É anúncio.
A primeira a quem guardo o rosto não aparece nos livros. Chamava-se Inés — Inés de Alburquerque, diziam, porque ajudara a nascer meio povoado. Tinha as mãos calejadas, os olhos de quem já viu milagres cotidianos. Preparava infusões para febres, banhos para reter sangue, rezas que amansavam o medo. Uma senhora de posses, Doña Beatriz de Osuna, perdeu o filho recém-nascido. Em vez de chorar a dor, preferiu investir-se de fúria. “Feiticeira”, soprou ao ouvido certo. O bispo repetiu. O corregedor decorou. Os clérigos anotaram. Inés foi arrastada por soldados até um estábulo, onde as traves ainda guardavam cheiro de feno. Antes que o sol nascesse, foi violada por homens que se benziam depois. Depois, com as pernas ainda marcadas, foi levada ao tribunal.
— Confessa, mulher. — a voz do escrivão soava oca, como se a consciência falasse de dentro de um barril.
— “Eu curei, não conjurei.” — respondeu, à beira do choro.
— Confessa. — repetiu o inquisidor. — Ou o demônio fará da tua filha o próximo holocausto.
Ela olhou para a menina, Catalinita, escondida atrás da mãe, e a decisão se inscreveu no rosto: a verdade queima, mas a ameaça queima mais. Inés calou. E o silêncio foi lido como culpa. A sentença veio em latim polido, como se o idioma sagrado purificasse o horror. A fogueira, alto. A corda, tensa. O povo, dividido entre o medo e a fome de espetáculo. E, no meio da praça, quando uma lágrima correu pela face de Inés, eu estava nela — uma linha d’água que refletiu o céu pela última vez.
Não pensem que a fogueira foi o auge. A fogueira foi a mise-en-scène. O inferno verdadeiro mora no antes: no corredor de pedras úmidas, no bafo sob a porta trancada, na mão que fecha a vela para que ninguém veja o que não quer admitir. Eu sei. Eu senti. Foi assim comigo, quando ainda me chamavam por outro nome. Por isso, quando os guardas de Inés lavaram as mãos numa bacia depois da “boa obra”, eu surgi na superfície calma. O guizo sussurrou. Eles gelaram. E souberam — embora não pudessem dizer: ela está aqui.
Houve também Rodrigo — Rodrigo de San Miguel. Camponês. O vizinho, Don Álvaro, queria a terra. “O trigo cresce demais”, disse, e deu-lhe o nome de feitiçaria. Prenderam-no numa noite sem lua. No dia seguinte, a corda trabalhou em praça menor, às pressas, sem público grande, porque nem todo assassinato merece festa. Don Álvaro herdou as linhas de plantio. Rodrigo herdou o esquecimento. Quiseram esconder o corpo; não esconderam do espelho. Eu o vi no escuro do poço onde o lançaram, a água dando de volta o rosto quebrado. Eu vi.
E uma menina, Leonor, doze anos. Talvez menos. A mãe estava presa por ter preparado pomada de arruda e azeite — remédio de pobre que o inquisidor chamou de “óleo do satanás” para rir depois na mesa. “Confessa, ou Leonor arde primeiro.” A mulher ergueu as mãos, implorou: “Minha filha, não.” O inquisidor sorriu sem os dentes de trás. Nunca houve confessionário mais cheio de violência do que aquele. Leonor acabou no fundo de um poço, a corda cortada no momento exato, para que o estalo não soasse na rua. O povo acordou no dia seguinte e disse: “Deus pesou”. Eu pesei. E, no metal polido do braseiro onde o inquisidor assava carne, o meu rosto apareceu, breve, e desapareceu, como um pensamento ruim. “É o calor”, disseram. Era o meu prenúncio.
Eu não cito todos. Alguns se chamavam Beatriz, Teresa, Juana; outros, Matteo, Domenico; outros, William, Thomas; muitos, ninguém. A história dá nomes às coroas e aos punhais, raramente às mãos calejadas. Eu guardei o que pude, no meu inventário de reflexos. Mas o que importa, para vocês, é saber que a culpa tem rosto — e eu o reconheço.
Houve, porém, uma mulher cujo destino explodiu como sino rachado pela cidade inteira: Catalina de Aranda. A “Santa del Pópulo”, chamavam-na nas aldeias. Curandeira de renome, vinda de família humilde, tornada respeitada pelo talento. Sabia reconhecer a febre na pele, a pneumonia no peito, o parto que precisava de lâmina, o útero que precisava de descanso. No mercado, os pobres lhe beijavam as mãos. Os nobres lhe lançavam olhares de lado — não porque duvidassem das curas, mas porque temiam o poder que não vestia púrpura.
— “Ela rouba as almas para si.” — insinuou Don Rodrigo de Villaseca, que perdera a amante para a consciência despertada por Catalina. Doña Beatriz de Osuna, a mesma que perdera o filho, arrematou: — “Ela toca em mulheres. A mão dela é a mão do demônio.”
Vocês sentem? A inveja, a cobiça, a ganância: todas essas palavras têm gosto de metal. Eu sinto o gosto. Quando elas se confrontam com uma superfície, umedecem-se de saliva, deixam rastro. E eu sigo.
O Inquisidor-mór daquela comarca chamava-se Tomás de Villalba. Era homem de meia-idade, rosto estreito, olhos que evitavam janelas. Sabia latim suficiente para decorar sentenças, retórica o bastante para santificar injustiças. Tinha o hábito de rir antes do veredicto, como se a lei fosse sua criada. Antes da fogueira, gostava de se deitar com as prisioneiras, e chamava a isso “prova”. O crucifixo pendia na parede, testemunha muda. A vela acesa dançava sombras sobre o corpo da mulher que chorava. Se alguém batia à porta, ele cobria a nudez com a desculpa: “Exame de marcas da bruxaria.” Quando terminava, ajustava o cinturão e dizia: “Escreva: culpada.”
Catalina foi presa numa manhã de vento. Não resistiu: no ofício de curar não há espaço para espadas. No corredor, um frei jovem, Frei Miguel, tentou aproximar-se.
— “Senhora, confesse para aliviar a alma.”
Catalina ergueu os olhos, escuros como a água de poço.
— “Minha alma não tem peso, frei. A de vocês, talvez.”
No tribunal, a sala era larga, pedra fria, bancos para a plateia. A mesa central tinha o brilho gasto de quem muitas vezes serviu à maldade. O escrivão, Diego de Talavera, aquecia a pena. Tomás de Villalba ajeitou a capa, fingiu compor gravidade.
— Catalina de Aranda, chamada Santa del Pópulo. — pronunciou, como se o título fosse cuspe. — Acusada de feitiçaria, concúbito com o demônio, subversão de costumes e… — sorriu — outras práticas inomináveis.
— “Curei filhos de vocês.” — disse Catalina, sem elevar a voz. — “Cortei febres. Fechei sangramentos. Trouxe ao mundo netos que hoje chamam vocês de avô.”
— O demônio concede curas… — veio uma voz do fundo, Padre Alonso, amigo do inquisidor. — …para iludir o rebanho.
— “O demônio está sentado à mesa.” — respondeu ela, e olhou nos olhos de Tomás.
Houve um murmúrio. Don Rodrigo de Villaseca levantou-se, teatral.
— “Vi com estes olhos Catalina soprar palavras sobre a testa de minha esposa e o filho que ela esperava morrer no ventre.”
— “A tua esposa morria de sífilis, Don Rodrigo.” — disse Catalina. — “E o teu filho nunca foi teu.”
A sala explodiu em cochichos. Tomás bateu com o punho, chamou à ordem. O escrivão raspou a pena.
— Tragam a prova. — Tomás apontou, e dois guardas arrastaram um saco. De lá, tiraram potes de cerâmica, folhas secas, ervas penduradas por barbantes. — Instrumentos de bruxaria.
— “São remédios, e vocês sabem.” — Catalina não tremia. — “Loendro, para dor. Alecrim, para o estômago. Arruda, para o ventre. E óleo para as mãos do parteiro que vocês nunca deixam entrar.”
Tomás aproximou-se. Tinha as mãos pequenas, unhas bem aparadas. Encostou dois dedos no queixo de Catalina, ergueu o rosto dela como quem examina um cavalo em feirão.
— Abre a boca. — ordenou, sem necessidade. — Procuro a marca do diabo.
— “Procure antes a sua.” — ela disse em voz baixa, para que apenas ele ouvisse. — “Eu a vejo na tua língua.”
Ele mordeu um sorriso. O tribunal é palco; os vermes têm gosto por plateia.
— Escreva, Diego: a ré se insubordina, debocha da autoridade e confessa ter conhecimentos que excedem o povo. — Fez uma pausa, calculada. — Talvez seja mesmo uma santa… do inimigo.
Alguém da plateia gritou: — QUEIMEM-NA!
Outro respondeu: — MISERICÓRDIA!
“Não é a misericórdia que falta”, pensei do meu lado, por detrás do brilho no chão de pedra. “Falta espelho.” Porque o espelho, ao fim, sempre devolve o rosto que fala.
A sentença foi lida com voz grave, latim e pompa como uma máscara para a vergonha: relapsa, pertinaz, obstinada em erro, condenada à fogueira em praça pública, para exemplo e assepsia da fé. Enquanto o escrivão passava areia sobre a tinta, Tomás aproximou-se de novo de Catalina, e disse entre dentes, com hálito de vinho:
— Há sempre uma noite antes do dia. — As palavras soaram como ameaça e interpretação. — E alguns exames exigem silêncio.
Catalina sustentou o olhar.
— “A tua língua te denuncia, Tomás de Villalba.”
Ela foi levada de volta à cela. Eu a vi, através do brilho úmido na parede. Ela rezou? Não. Pensou? Sim. Se morro por curar, morro inteira, pensou, e aquilo foi o mais perto de uma oração que alguém disse naquela cidade em anos.
Naquele mesmo entardecer, Tomás entrou no cubículo com dois guardas. Mandou-os esperar do lado de fora. Puxou o fecho da capa, tirou os anéis, como quem prepara as mãos para “examinar marcas da bruxaria”. O crucifixo olhava do alto, inútil. Eu estava na água da bacia, quieta, à espreita.
— A língua do diabo é doce agora? — ele murmurou, aproximando-se.
— “A tua é amarga desde sempre.” — ela respondeu, e não houve pânico na voz.
Eu não posso impedir. O meu poder não é o de barrar a violência — é o de cobrar, depois. E eu cobro com juros que o mundo não conhece.
Quando terminou, Tomás lavou as mãos. Lavou-as como se água dissolvesse culpa. Eu estava na bacia. O metal do aro refletiu, um instante, a sombra das minhas serpentes. Ele estacou, mãos suspensas, água pingando. O guizo soou, baixo, primeiro na memória que ele renegava, depois na orelha.
Ele se virou brusco, como quem pensa ouvir um rato. Não viu ninguém. Sorriu, sozinho, convencido de que o medo é para os outros. Enxugou as mãos na toalha. Eu não estava pronta. Ainda não.
O dia da fogueira nasceu como nascem todos: com pássaros que ignoram a maldade dos homens. A praça encheu-se de gente. Vendedores de pão, de vinho, de palavras. Crianças que não deveriam ver, mas viram. Mulheres que já tinham sido curadas por Catalina e, agora, abaixavam o olhar de medo. Nobres que disfarçavam a excitação com piedade de meia-voz. Padres e monges, perfilados como colunas.
Catalina veio entre dois guardas, o vestido simples, os cabelos soltos. Não parecia santa nem diaba; parecia viva. Contemplei o rosto dela pelo reflexo numa lâmina de punhal. O fogo estava empilhado, pronto para ensinar às crianças o cheiro de carne queimada.
— Últimas palavras? — perguntou Tomás, triunfante. E ajeitou a cruz no peito, em gesto ensaiado.
Ela ergueu o queixo.
— “Que a tua noite seja longa.” — disse, e olhou para a janela do palácio, onde o vidro antigo tremia. — “E que ninguém nunca mais precise das minhas mãos.”
O carrasco aproximou a tocha. Alguém gritou MISERICÓRDIA. Outro respondeu QUEIMEM! Eu ouvi o estalo primeiro, o estalo seco de ramos velhos que anunciam o fogo. Eu vi a chama subir, a pele contrair, o ar abrir caminho pela garganta como faca. Eu vi. Eu vi tudo. E quando as pessoas passaram a olhar para outro lado, eu olhei para cima.
No balcão do palácio, Tomás de Villalba bebeu vinho num cálice de prata, como se celebrasse missa privada. Um fio escorreu pelo metal, e o mundo inteiro coube naquele brilho. O meu guizo soou dentro da taça. Ele parou de beber. O riso dele pendurado no canto da boca transformou-se numa ruga. A prata tremeu. Ele inclinou-se para ver.
Eu estava lá.
A superfície abriu-se como lago. Não há água no metal, dirão; mas há reflexo, e basta. A mão de Tomás afundou até o punho. A outra seguiu. O torso, os ombros, a cabeça. Não houve tempo para gritar como nos palcos. O cálice, visto de longe, pareceu ter derramado vinho demais. “Bebeu de mais”, alguém disse. Ninguém diz “desapareceu”. A vergonha escolhe a gramática.
Os guardas correram, procuraram atrás das cortinas, abaixo da mesa, no corredor. Diego, o escrivão, segurou o livro aberto e não percebeu a tinta borrando a sentença, como se a letra recusasse o destino que havia escrito. “Tomás?” chamaram. O nome morreu entre colunas.
Do lado de cá, o mundo não tem paredes. Tem corredores de vidro e milhares de versões da mesma porta. Quando Tomás caiu no meu labirinto, trouxe junto o cheiro de vinho e a lascívia da noite anterior. Tentou pôr-se de pé, como quem ainda dá ordens.
— Guardas! — sua voz ecoou, ridícula.
O eco respondeu: GUARDAS! — e não havia ninguém.
Ele caminhou, ludibriado por saídas que devolvem entradas. Em cada parede, um reflexo. Em cada reflexo, um ato seu. Vi-o antes do “exame” em outra prisioneira, Beatriz de Villena, que nunca pôde dizer “não” sob pena de morrer mais cedo. Vi-o rindo enquanto um menino, Juanito, era ameaçado para fazer a mãe “confessar”. Vi-o justificando o garrote com latim, justificando a garrucha com retórica, justificando a corda com dois dedos de cruz. Vi-o lavando as mãos, sempre, sempre, como se água fosse absolvição. E eu, caminhando ao lado, ouvi os guizos das minhas serpentes, e ri. Eu rio quando o culpado descobre que culpa não morre.
— Isto é inferno? — ele tentou filosofia, ridículo, como todos os que — tarde demais — desejam pensar.
— “Isto é você.” — respondi, e não precisei levantar a voz. Aqui, a minha palavra é chão.
— Quem és? — murmurou, os olhos estreitos, como se ainda pudesse me reduzir a fábula.
— “Eu sou a que você invocou quando olhou no cálice”, disse. “Sou o que foi feito de mim quando um homem com tua capa e tua cruz decidiu que a minha dor era culpa minha. Sou a justiça dos violados.”
As serpentes moveram-se, e o som de chocalhos encheu as galerias. Ele tentou tapar os ouvidos. Não há dedos para tanto.
— Eu… eu servi à fé. — a voz resvalou. Eu já ouvi esta defesa mais vezes do que vocês já ouviram o sino da aldeia.
— “Você serviu à tua fome.” — respondi. — “E deu-lhe nome bonito.”
Ele correu. Correm todos. O labirinto cede passagem para que a corrida exista; mas toda corrida é um círculo. Começa na tua boca e volta aos teus dedos. Tomás chegou a uma sala maior, uma praça de espelhos, e no centro viu Catalina de Aranda. Mas não era a Catalina queimada; era a Catalina que atendeu partos, que consolidou costelas, que penteou meninas. Ele abriu a boca para dizer “perdão”, e não disse. A palavra não nasce em quem nunca a praticou.
— “Eu não salvo as vítimas,” expliquei. “Não as resgato, não as restauro. Não me foi dada essa mão. O que eu faço é outra coisa: eu as ponho diante dos culpados, e tomo os culpados para sempre.”
— Misericórdia… — Tomás disse, e o rosto pediu o que a mão sempre negou ao outro.
As minhas serpentes mexeram o suficiente para que o som se tornasse mais grave.
— “Você teve séculos para oferecer misericórdia. O tempo serve para isso. Aqui, o tempo serve para pensar.”
Os espelhos, em coro, começaram a refletir uma fogueira. Depois outra. Depois mil. Em cada uma, um crime que ele chamou de “prova de fé”. Em algumas, o corpo que ardia era o dele — não para que eu o ferisse, mas para que ele reconhecesse o mecanismo da dor. Ele tentou afastar o fogo com os braços, e os braços encontraram vidro. Tentou fechar os olhos, e as pálpebras, nesta casa, não obedecem à covardia.
— Eu vou enlouquecer. — anunciou, como se me assustasse.
— “Você trouxe a tua loucura. Aqui, ela serve de utensílio.”
Houve um momento em que ele ouviu passos. Virou-se, e viu Frei Miguel.
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Atualizado até capítulo 32
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