Eu julgo e condeno os culpados, e protejo os inocentes.
Onde houver reflexo, há sentença. Onde houver olhar, há destino.
Roma brilhava como ouro martelado à luz das tochas — e ardia como resina no braseiro. Nos corredores do Palácio Dourado, a seda arranhava o mármore e o riso de cortesãos cobria o medo como perfume barato cobre o cheiro de fumaça. No centro de tudo, Nero — não um governante, mas um espetáculo que exigia plateia eterna.
Era jovem quando o chamaram de César, e foi cedo que o título escorregou para dentro de sua cabeça como vinho quente derramado demais. Agripina, a mãe, teceu sua ascensão com dedos de aranha; mas o filho, assim que sentiu o gosto do poder, mordeu a teia e devorou a fiandeira. Conspirou, errou as primeiras vezes, insistiu. Quando afinal o corpo da mãe jazia nos salões, Nero aproximou-se com os olhos acesos de febre.
O Matricídio e os Sacrifícios
A noite em que Agripina tombou foi a noite em que Roma perdeu qualquer esperança de redenção em seu imperador.
A mãe, que durante anos o havia guiado e manipulado, agora era vista como obstáculo. Nero armou sua morte como quem monta uma peça teatral. Houve veneno no vinho, houve emboscadas, mas Agripina parecia escapar de todas as ciladas. Até que, finalmente, soldados foram enviados para concluir a execução.
Quando o corpo foi trazido ao palácio, Nero não chorou. Não se envergonhou.
Aproximou-se, o olhar febril iluminado pelas tochas, e ordenou o impensável:
— “Abram o ventre dela. Quero ver de onde eu vim. Quero ver se carrega ouro. Como poderia uma mulher comum ter dado à luz alguém tão brilhante como eu?”
Os servos hesitaram, mas a ordem era lei. As lâminas cortaram, e o ventre da mãe foi exposto como oferenda macabra ao delírio do filho. Nero observava fascinado, como se esperasse encontrar tesouros. Encontrou apenas sangue.
— “Nada. Apenas vazio. Apenas carne. Ela não era digna de mim.”
Naquele instante, algo se rompeu. Não era apenas um parricida. Nero havia se transformado em um ser que profanava a própria origem.
E Nero aplaudia. Aplaudia como se assistisse a um espetáculo de teatro.
— Nada. Só carne. Ela nunca foi digna de mim.
Naquele instante, uma rachadura abriu-se no mundo: não no piso de mármore, mas nos reflexos. Os espelhos do palácio escureceram nas bordas como prata antiga; dentro deles, um sussurro de guizos levantou-se, tão leve que nenhum ouvido ousou admitir que ouviu.
A sede de ver “o que havia por dentro” não parou ali. Se não havia ouro no ventre de Agripina, haveria em outros — decidiu. E a ordem saiu, limpa, com o mesmo tom com que pedia vinho:
— Tragam-me grávidas.
O Matricídio e os Sacrifícios
A noite em que Agripina tombou foi a noite em que Roma perdeu qualquer esperança de redenção em seu imperador.
A mãe, que durante anos o havia guiado e manipulado, agora era vista como obstáculo. Nero armou sua morte como quem monta uma peça teatral. Houve veneno no vinho, houve emboscadas, mas Agripina parecia escapar de todas as ciladas. Até que, finalmente, soldados foram enviados para concluir a execução.
Quando o corpo foi trazido ao palácio, Nero não chorou. Não se envergonhou.
Aproximou-se, o olhar febril iluminado pelas tochas, e ordenou o impensável:
— “Abram o ventre dela. Quero ver de onde eu vim. Quero ver se carrega ouro. Como poderia uma mulher comum ter dado à luz alguém tão brilhante como eu?”
Os servos hesitaram, mas a ordem era lei. As lâminas cortaram, e o ventre da mãe foi exposto como oferenda macabra ao delírio do filho. Nero observava fascinado, como se esperasse encontrar tesouros. Encontrou apenas sangue.
— “Nada. Apenas vazio. Apenas carne. Ela não era digna de mim.”
Naquele instante, algo se rompeu. Não era apenas um parricida. Nero havia se transformado em um ser que profanava a própria origem.
E foi depois disso que surgiu sua nova obsessão.
Se não encontrou ouro no ventre da mãe, buscaria em outros ventres.
Ordenou que mulheres grávidas fossem capturadas e trazidas ao palácio. Escravas, cidadãs, esposas de soldados — nenhuma estava a salvo.
— “Quero ver a vida antes da vida”, dizia ele, com um brilho doentio nos olhos.
As câmaras de mármore viraram câmaras de sacrifício. O grito das mães ecoava, o choro interrompido dos bebês não nascidos pairava no silêncio.
E Nero aplaudia. Aplaudia como se assistisse a um espetáculo de teatro.
Vieram de toda parte: escravas e patrícias, esposas de soldados e filhas de mercadores. A câmara fria de mármore transformou-se em sala de sacrifícios. Ele observava como criança de olhos vidrados diante de um brinquedo cruel, esperando que a vida revelasse algum segredo cintilante. Não revelou. Revelou gritos. Revelou silêncio. Revelou que o poder, sem freio, cava abismos.
Roma aprendeu a andar com os ombros encolhidos. Artistas que arrancavam aplausos espontâneos descobriam, na manhã seguinte, que a voz tem preço e que a mão virtuosa pode ser quebrada como galho seco. Nas corridas noturnas, Nero exigia a glória; se o acaso afrontava, os cavalos vencedores desapareciam para trás de muros grossos, e uma fumaça sombria subia ao céu como assinatura de culpa.
E, ainda assim, nada lhe foi tão precioso quanto um espelho vivo: um adolescente de traços delicados, olhos grandes, medo à flor da pele — Esporo.
Nero o enxergou numa apresentação e farejou destino. O palácio cochichou, o povo zombou, a corte fingiu não ouvir. O menino foi tomado à força do mundo que ainda lhe cabia e, por ordem imperial, o futuro lhe foi mutilado. Não houve poesia naquele ato, só barbárie. Depois vieram as roupas que não eram suas, o véu, a cerimônia ridícula: o imperador apresentando-o como “esposa”. Os risos cortavam Esporo como lâminas invisíveis. À noite, quando o palácio dormia, o menino aprendia o peso da própria respiração.
— Viva, “imperatriz”! — zombavam nas sombras.
Nero sorria, satisfeito consigo. Não amava Esporo; amava se ver em Esporo, como Narciso ama a água — não por ser água, mas por lhe devolver o rosto.
E, quando já não lhe bastava usar o corpo alheio como fantasia, Nero inverteu a cena: vestiu-se de mulher, exalou perfumes, cobriu-se de véus, e numa cerimônia noturna tomou Pitágoras por esposo. Riram por dentro, tremeram por fora. No palácio de Nero, o riso errado custava caro.
A cidade começou a queimar numa noite em que o vento parecia gostar de labaredas. O fogo correu pelos telhados como raposa faminta, e a lira do imperador, no alto de sua varanda, cortou a escuridão com notas agudas. Uns juram que ele cantou; outros, que ordenou. Para o fogo, pouco importava a autoria: interessava-lhe comer Roma.
Nero deu as costas ao desespero do povo e girou para um grande espelho oval, emoldurado de ouro. O calor do incêndio fazia a prata ondular como água; nos cantos, a escuridão parecia crescer. Foi então que o salão inteiro ouviu — não com orelhas, mas com a pele — um chocalho. E, no vidro, um par de olhos não humanos acendeu-se como brasas.
As víboras mexeram-se em um cabelo que não era humano. A Medusa sorriu.
— Nero — eu disse. Sim, eu; pois a minha voz é a voz dos reflexos. Você foi julgado. Você foi condenado.
Ele riu — e foi o riso de quem se acha à prova de deuses.
— Mais um palco? Mais um jogo? — aproximou-se, braço aberto, a túnica tocando a moldura. — Pois que comece o espetáculo.
Quem é louco acha portas onde há paredes. Quando Nero tocou meu ventre de vidro, não houve choque: houve passagem. Ele entrou porque quis. A cidade ardeu além do salão, os gritos fizeram o teto vibrar, e o imperador sumiu na superfície como quem mergulha num lago sem fundo.
Do lado de cá, eu o esperei. E ela também — Agripina. Ao lado dela, sombras de outras coroas tombadas por excesso de si: Calígula, ditadores menores, carrascos maiores, uma procissão de nomes que a História aprende a murmurar. Não celebravam. Ninguém celebra no meu lado.
— Mãe — disse Nero, vislumbrando a figura. Por um instante, o menino que um dia foi nele ergueu o queixo por cima do homem que jamais aprendeu a sê-lo.
— Não há mãe aqui — respondeu Agripina, os olhos mais firmes do que foram em vida. — Há o que você fez.
As paredes de meu labirinto — corredores intermináveis de espelhos — devolveram essa frase mil vezes, até que o sentido se tornasse peso. Nero moveu-se para frente, e em cada superfície sua imagem se multiplicou. Viu-se cantando enquanto Roma ardia; viu a mão avançando contra Pompéia grávida; viu as noites em que fez do pânico de Esporo um espetáculo. Cada visão tinha a nitidez exata que a consciência tenta apagar.
— Saia do meu caminho! — rosnou ao vidro, e o vidro não se mexeu.
— Vocês são a minha coleção — disse a Medusa, descendo devagar, as serpentes tilintando como braceletes numa sala silenciosa. — Meus bichinhos de estimação. Aqui não há senado, não há aplauso. Aqui há tempo — e tempo é lâmina que não cessa.
Nero golpeou a parede com o punho; não ganhou dor, ganhou eco. Ao lado, Calígula riu um riso curto, cansado de si mesmo. Em frente, Agripina não piscou. E, enquanto o imperador buscava uma porta, eu lhe ofereci apenas espelhos.
— E os inocentes? — perguntou uma voz, vinda de um corredor que cheirava a maresia. Era o sussurro de Esporo, que não entrou comigo. Ele estava do outro lado — vivo, ainda; e a vida, para ele, era a prisão. E eu?
— Você é meu protegido — respondi. — Eu não prendo inocentes.
Nero ouviu — e odiou. O ódio salpicou de cuspe o chão impecável do meu labirinto.
Lá fora, os cortesãos passaram a contar outra história. Disse-se que Nero se suicidara, que murmurara pelo menos uma frase de arrependimento, que o fim de um tirano era notícia antiga repetida com nomes trocados. Não importa, para a cidade, como morreu quem fazia morrer. Importa que morreu.
Mas Roma não ficou órfã. O lugar do monstro foi tomado por um semblante — um homem que vestiu o rosto de Nero como quem veste máscara, talvez um sósia treinado, talvez um cúmplice favorecido. Ele governou como sombra: não tinha a loucura original, mas tinha a coragem de copiá-la. E uma cópia que não arde por dentro tende a arder por fora: o povo continuou a sofrer, os decretos continuaram a cair como chuva de flechas, e a cidade aprendeu que às vezes o pior não é o tirano — é o eco do tirano.
Eu não julguei o eco. Julgo a origem.
O destino de Esporo, depois, levou-o a um outro palácio, sob outro príncipe. Trocaram-se estátuas, sobreviveram guardas, mudaram as vozes das ordens. O menino, que já não era menino, foi empurrado para a borda do mundo. Os que desejavam matar o símbolo de Nero escolheram o mais fraco: forçaram Esporo à morte, ferro em brasa aproximado do que o corpo aguenta menos, numa sala sem janelas onde a fé tem dificuldade de entrar.
Ele tremeu, segurou o próprio destino com as duas mãos, ergueu o queixo. Não havia plateia, e ainda assim ele recusou-se a morrer como espetáculo.
— Ao menos assim eu serei livre — disse, com a voz que ainda lhe restava. — Melhor a dor em um golpe do que a humilhação todos os dias.
Quando fechou os olhos, eu não o chamei. Não era meu. Minha prisão não conhece suas pegadas; meus corredores não guardam sua sombra. Não se acende lâmpada para entrar o sol. Houve um sopro — não de guizos, mas de brisa — e a dor apagou como apagam-se velas quando, enfim, ninguém precisa vê-las.
Do lado de cá, Nero percebeu. Como um cão que se lança contra a porta por ouvir passos que não lhe pertencem, investiu contra um espelho.
— Traga-o! — exigiu. — Ele é meu!
— Você nunca teve ninguém — respondi. — E agora, menos do que nunca.
O silêncio que veio depois não foi vazio: foi justiça.
Roma continuou. Os mercados voltaram a abrir ao amanhecer, crianças correram atrás de pombos, o vinho voltou a colorir os lábios dos viventes. Mas os espelhos daquela cidade — e de todas as outras — guardaram a memória de um fogo e de um mergulho. Nas casas dos pobres, eles refletiam mãos calejadas e rosto queimado de sol; nos palácios, refletiam coroas e joias. Em todos, entretanto, vive uma possibilidade.
Eu sei o que você é quando ninguém vê.
Eu vi o que você fez quando achou que o mundo dormia.
Eu estava lá quando você abriu o ventre de quem lhe deu vida.
Eu estava lá quando você arrancou de um menino até o direito de ter futuro.
E, porque estive, estarei. Onde estiver um espelho, estarei. Não sou vidro, sou veredito.
Nero caminha aqui em círculos, eternamente. Às vezes canta; às vezes grita; às vezes morde o próprio riso. Agripina não lhe oferece colo nem condenação — oferece-lhe presença. Calígula inventa jogos para os quais ninguém quer apostar. Outros nomes — menos célebres, não menos culpados — aprendem a contar o tempo pelo som de meus guizos.
É uma música mínima, essa que toco para eles. Um chacoalhar de serpentes que nunca se cansa. Não há saída. Porque neste lugar toda saída é entrada, e todo atalho leva ao mesmo ponto: você.
E, ainda assim, não sou injusto.
Protejo Esporo com o que tenho de mais precioso: o lado de fora. Deixo que seu nome, por fim, respire sem riso alheio. Ele não caminha por aqui.
Você, que leu até aqui, talvez encoste a mão na boca do espelho mais próximo. Talvez sinta o frio da superfície e veja, no fundo, um brilho leve que não estava ali antes. Não é ouro. É consciência.
Pense antes de mirar.
Pense antes de mentir para si.
Porque eu julgo e condeno os culpados, e protejo os inocentes.
E minha prisão, dentro de mim, não tem fim.
Sou labirinto. E você nunca encontrará saída — se merecer
ficar.
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Atualizado até capítulo 32
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