Hewellyn
Quando eu disse que ia embora do Brasil, metade dos meus amigos jurou que eu voltaria em três meses. A outra metade já estava pedindo lembrancinha em dólar. Minha mãe só chorou. Vinícius, meu irmão caçula, passou o dia dizendo que eu seria “a tia da neve”.
— Você vai mesmo? — perguntou minha mãe pela milésima vez, com a mão no avental florido, o cheiro de alho e cebola invadindo a cozinha.
— Vou, mãe. — respondi, fechando o zíper da mala com o peso de quem fecha uma vida inteira — Eu prometo ligar todo dia. Tá bom, quase todo dia. Tá… dia sim, dia não.
— Dia sim e dia sim. — ela corrigiu, séria, mas o canto da boca cedeu num sorriso.
Vini apareceu chutando uma bola velha pela casa.
— Ô, tia da neve, traz um boneco de gelo pra mim.
— Boneco de neve, Vinícius.
— Isso aí. Um bem grandão. E chocolate canadense. E um moletom. E…
— E um irmão mais educado. — brinquei, jogando a almofada nele.
Ele riu, se esquivou e veio me abraçar com força. Cheirava a desodorante barato e infância.
— Vai com Deus, tá? E volta milionária. Quero um videogame.
— Vou voltar cantora famosa, sua peste. Aí te coloco no meu clipe, só se você parar de chutar bola dentro de casa.
Minha mãe bateu a colher de pau no balcão.
— Menos promessas e mais comer. Senta, filha. Último almoço em casa é de responsa.
Eu sentei. Arroz soltinho, feijão com calabresa, farofa dourada, frango assado com batata, salada de tomate, o combo que salva qualquer saudade. A cada garfada, eu pensava:
— “Vou sentir falta até do cheiro dessa cozinha.”
— O Canadá é frio. — insistiu minha mãe, servindo suco — Gente fria, tempo frio, tudo frio.
— Eu tenho casaco. — falei.
— Não é só casaco. É coração quentinho. Leva o seu.
— Levo, mãe. — sorri, tentando não chorar — E eu canto. Quando eu canto, eu esquento.
Ela apertou minha mão sobre a mesa.
— Você nasceu cantando. Eu te ouvi antes do choro. Foi um dó maior. — Riu, emocionada — Vai, meu amor. O mundo precisa te ouvir.
No aeroporto, o cheiro de café e despedida se misturava. Meu pai, que quase nunca dizia muito, me abraçou tão forte que doeu nas costelas.
— Se der errado, volta. Se der certo, volta também. A gente cabe no seu sucesso.
— Pai… — sussurrei, com a garganta ardendo.
Vini abriu os braços, performático.
— Último abraço grátis, hein!
A gente riu. Eu abracei os três e guardei o som da risada deles num lugar que ninguém podia roubar.
Toronto me recebeu com um vento que parecia mordida. Eu, que achava que sabia o que era frio, aprendi naquele dia que “frio” tem dialetos. O frio de Toronto fala grosso e sem paciência.
Meu primeiro apartamento era do tamanho de uma generosidade… um quarto que mal cabia a cama, uma cozinha onde eu batia o quadril na bancada se virasse rápido, e um banheiro que fazia barulhos de filme de terror quando a água esquentava. Mas era meu. Coloquei uma vela cheirosa, pendurei um pano de prato com um tucano e fiz do micro-espelho a moldura do meu recomeço.
De dia, eu entregava currículos em qualquer lugar que tivesse uma placa “help wanted”. De noite, corria atrás dos bares que aceitavam música ao vivo. Depois de dois “não”, um “tá bom, mostra o que você sabe” me salvou. O dono se chamava Pete, um canadense com cara de quem já tinha visto todas as bandas ruins do mundo.
— Você canta o quê? — ele perguntou, coçando a barba, apoiado no balcão.
— O que você quiser. Mas se deixar, eu canto o que eu gosto. — respondi, com meu inglês de coragem.
Ele apontou para o palco minúsculo, um tapete gasto e um microfone que claramente já viveu além de seu tempo.
— Quarta e sexta. Duas entradas por noite. Começa com clássico. Se a galera gostar, você me convence do resto.
— Fechado. — respondi, tentando não pular.
Mia, a bartender, me deu um sorriso simpático.
— Bem-vinda ao show, Brazil.
— Obrigada. Seu delineado é perfeito.
— É a única coisa que eu controlo aqui. — ela piscou.
Na primeira noite, minhas mãos tremiam de um jeito que só quem sonha reconhece. Segurei o violão, respirei três vezes e comecei suave. “Stand by Me” foi minha senha para o público me dar ouvido. Depois, uma versão lenta de “Garota de Ipanema”. O “tchu tchu tchu” tímido de alguém batendo os dedos na mesa me fez rir no microfone.
— Obrigada, vocês são fofos. Eu sou Hewellyn, sou do Brasil… e sim, eu sinto falta do feijão. — A plateia riu — Mas aqui tem poutine, então estamos quites. Mentira, feijão ganha.
Uma mulher levantou o copo.
— To the girl from Brazil!
— Cheers! — respondi, e cantei uma do Djavan em inglês macarrônico. Virou charme.
No final da noite, Pete me chamou de lado.
— Você tem algo. Não sei o quê, mas tem. Volta sexta.
— Se eu sei algo é o nome disso… esperança. — retruquei, e Mia bateu palma.
Foram semanas assim. Eu cantava com o coração, sorria com a alma e voltava para o meu micro-apê com um pouco de dinheiro e a sensação de que, talvez, eu tivesse acertado a aposta.
Naquela sexta, tudo parecia no lugar. Sábado eu ia folgar, então a minha vibe era: cantar, aquecer as mãos na caneca de chá, não me julgue, eu tentava ser chique, e depois ir pra casa ver vídeo de receita de pão de queijo. A vida adulta é isso.
Cantei a primeira entrada com uma playlist que misturava Norah Jones e Marisa Monte. Na segunda, arrisquei uma música minha, sobre saudade que fala alto no travesseiro. Teve gente que chorou. Eu também, mas fingi que era o ar-condicionado no olho.
— Você é boa. — Mia comentou, colocando um copo de água no palco — E honesta. O povo sente.
— Eu também sinto, né? — brinquei — Quem não sente, mente.
— Profunda. — ela ironizou.
— Brasileira. — corrigi, piscando.
Saí do bar enrolada no meu casaco com capuz. O ar cheirava a asfalto molhado, mesmo sem chuva. Quando eu dobrei a esquina para cortar caminho até em casa, ouvi o primeiro estalo.
Na minha cabeça, eram fogos. Eu sei, quem mora no Brasil confunde “tiro” e “fogos” desde cedo. Mas ali não tinha São João. O segundo estalo não deixou dúvidas. Tiro. Seco. Cru.
— Droga. — sussurrei, procurando abrigo atrás de um carro.
Me encolhi, o coração pulando. O som vinha do quarteirão de cima. Vozes em uma língua que eu não reconhecia, passos apressados, metais raspando, pneus cantando baixo na curva.
Eu deveria ter dado meia-volta. Eu deveria ter ido pro bar de novo, pedido ajuda, ligado pra polícia. Mas o problema das palavras “deveria ter” é que elas chegam sempre depois. Na hora, eu só redefini coragem como “falta de noção” e dei uma espiada.
Foi quando eu vi.
Ele.
No meio do caos, um homem avançava. Alto, ombros largos, a postura de quem sabe mandar sem gritar. Não corria. Se movia com precisão, como se cada passo tivesse sido ensaiado centenas de vezes. Na luz amarelada do poste, eu só conseguia ver os contornos, um casaco escuro, luvas, olhos que pareciam farejar perigo antes dele acontecer.
Dois carros parados em sentidos opostos erguiam uma barricada improvisada. De trás, um dos homens levantou a arma. Eu segui a linha invisível entre o cano e o alvo.
Era nele.
Eu não sei te explicar o que aconteceu comigo naquele segundo. Tem gente que trava. Tem gente que corre. Eu… fui.
— Não! — o grito saiu de mim antes da razão.
Meus pés decidiram primeiro. A rua virou sala, o asfalto virou palco, eu virei… louca. Cruzei o espaço entre carros como se fosse pegar um ônibus. O rosto dele virou para mim, e por um instante, os olhos dele encontraram os meus. Eram escuros, de uma calma aterrorizante, como se o caos fosse rotina e eu, uma interrupção imprevista.
Eu me joguei.
O estampido cortou o ar. O choque me atravessou como faca quente em manteiga. Não parecia como nos filmes. Era quente. Ardido. Injusto. Minhas pernas fraquejaram, meu corpo pediu chão.
— Merda! — ouvi alguém xingar, longe demais. Passos correndo, outro tiro.
Caí. O frio do asfalto subiu pela minha coluna. Tentei pensar em algo inteligente, tipo “se eu sobreviver, nunca mais vou atravessar a rua sem olhar”. Consegui só: “minha mãe vai me matar se eu morrer.”
A sombra dele me cobriu. As mãos, grandes, firmes, me tocaram com uma urgência que não doeu.
— Ei. — A voz veio grave, firme, um comando que parecia saber o que fazer com o mundo inteiro — Fica comigo.
Eu queria dizer “tô aqui”, mas minha boca não obedeceu. Abri os olhos. Vi os dele. Claramente não eram olhos de um homem qualquer. Havia dureza, havia cálculo… e havia uma faísca que não combinava com a frieza em volta. Não era piedade. Era decisão.
— Não fecha os olhos. — ele deu uma ordem, como quem proíbe a morte de se aproximar.
Eu tentei obedecer, juro. Mas o escuro chegou com dedos gentis, como um cobertor. O som dos tiros ficou distante, como se alguém tivesse fechado a porta do mundo. Tudo foi ficando pequeno, pequeno, até caber dentro dos olhos dele.
E antes que a noite me engolisse, pensei o pensamento mais idiota da minha vida:
— “Se eu não morrer, vou brigar com esse homem por ter voz de “manda e desmanda”.”
E, então, apaguei.
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Atualizado até capítulo 43
Comments
Monica Da Silva Salvador da Conceição
já me ganho nós primeiro capítulo.
Parabéns para a autora.
2025-09-05
8
Maria Rita
GENTE PROMETE SER BOA.
VOU LER.KKKK 06.09.25
RITA. ACRE
2025-09-06
1
Marilena Yuriko Nishiyama
Hewellyn,vc é doida garota,tá certo que quis ser uma boa samaritana para salvar o homem que vc nem conhece,mas infelizmente acabou levando um tiro
2025-09-05
1