Hewellyn
A enfermeira entrou no quarto com um sorriso que parecia adesivo, grudava, mesmo que a pessoa não quisesse sorrir de volta.
— Pronta pra liberdade condicional? — ela brincou, entregando-me uma pilha de papéis.
— Se liberdade vier com essa camisola horrorosa e um buraco no ombro, eu aceito com ressalvas. — respondi, fazendo careta quando estiquei o braço.
Ela riu.
— Cicatrizes viram história. E… — folheou a prancheta, como quem procura uma parte doce do dia — parabéns, sua conta já foi paga.
— Desculpa, o quê?
— A conta. Totalmente quitada pelo seu… — ela mordeu o lábio, segurando a vontade de fazer suspense — “namorado”.
Eu pisquei.
— Meu… quê?
— Namorado. — repetiu, cruzando os braços, satisfeita por ter lançado a bomba — Alto, cara fechada, olhos que encaram até a alma. É desse tipo que você gosta?
— Não, eu gosto de paz. E de desconto à vista. Mas por que esse homem falou que é meu namorado? A gente nem se conhece! Ele tem um problema sério de identidade.
— Na ficha ficou “companheiro”. Tradução da recepção. — A enfermeira deu de ombros — Só sei que ele pagou tudo e que a cara de “não me faça perguntas” funcionou com todo mundo aqui.
Suspirei, entre indignada e… curiosa. O desconhecido do tiroteio. O mesmo que, assim que abri os olhos, já foi me dar bronca. O mesmo que saiu do quarto como se o oxigênio fosse dele.
— Você sabe o nome dele? — perguntei, como quem não quer saber tudo.
— Não posso informar. — Ela sorriu do tipo “até poderia, mas gosto do drama” — Só posso dizer que ele tem jeito de problema.
— Grande novidade. — resmunguei, assinando o último papel — E tem jeito de que o mundo gira do jeito que ele manda.
— Tem jeito de que se o mundo não girar, ele gira o mundo no braço. — ela completou, rindo.
— Ótimo. Um carrossel com dono.
Tentei levantar. O corpo reclamou com toda razão. O sutiã apertava a faixa, a pele ardeu debaixo da gaze. Eu respirei fundo, contei até cinco e vesti meu casaco com a delicadeza de quem veste cristal.
— Mais dois dias de analgésico. — a enfermeira avisou, profissional — Nada de pegar peso, nada de cantar gritando, nada de armar barraco.
— Tirou toda a graça. — falei fingindo decepção.
— E, Hewellyn… — ela suavizou a voz — quando a gente quase morre, o mundo fica mais barulhento. Se precisar, volta. Nem que seja pra tomar um café comigo.
Sorri.
— Obrigada, de verdade.
Saí do hospital com a sacola de remédios, o ombro costurado e a cabeça a mil. O vento de Toronto batia sem dó na faixa por baixo do casaco. Cada passo parecia lembrar meu corpo de que eu era feita de carne, osso e teimosia.
Na calçada, respirei fundo. A cidade seguiu sem me notar, buzinas educadas, bicicletas cortando o ar, pessoas com pressa. Eu era só mais uma.
“Namorado.” A palavra ficou me cutucando atrás da orelha. Ele podia ter assinado como “o cara inconveniente”, “o ingrato”, “o que tem voz de quem manda e desmanda”, mas escolheu “companheiro”. Que audácia. Que facilidade para inventar papéis.
Peguei o metrô, desci duas estações depois e fui direto ao meu micro-apê. Tudo estava no lugar onde deixei, o violão encostado na parede, a xícara com marca de batom na pia, o casaco jogado no sofá. Liguei o aquecedor, que gemeu como um senhor idoso levantando da poltrona.
Tomei banho com cuidado, vestindo uma camiseta larga de banda, que eu gostava mais pela largura do que pela banda. Depois, sentei na cama com o celular na mão e um pensamento chato:
— “Eu deveria avisar no bar.”
Mandei mensagem pro Pete:
— “Quase morri, vou precisar de uns dias. Prometo não virar fantasma.”
A resposta veio em dois segundos, o que em Pete equivalia a gritos:
— “Quase o quê??? Não vale morrer sem avisar.”
Ri sozinha, mesmo doendo.
— “Tiro. Longa história. Passo aí amanhã pra explicar. Juro.”
— “Se não vier, eu vou aí.”
— “Deus me livre.”
No dia seguinte, com o ombro latejando e a cara de quem não dormiu direito, fui ao bar. Mia estava no balcão, enrolando canudos coloridos como se fossem rosas.
— Menina! — ela gritou quando me viu — Você está viva!
— É, eu dei um pulo no além, mas voltei. Só pra te ver, inclusive.
Ela saiu de trás do balcão e me abraçou com cuidado.
— Vai devagar, ombro protocolado. — brinquei, fazendo careta.
— Senta, conta tudo. — Mia exigiu, me empurrando pra uma banqueta — Quem atirou em você? Quem é esse lunático? Você namora um mafioso? Você tem cara de quem namora mafioso. Não sei por quê, talvez o olhar dramático…
— Eu não namoro ninguém, Mia. Eu salvei um desconhecido de levar um tiro. O desconhecido apareceu no quarto do hospital, me deu bronca por eu ter salvo a vida dele e foi embora. Aí pagou a conta e disse que era meu namorado. Como você explicaria isso?
Ela ficou um segundo avaliando.
— “Red flag” de propósito? Ou “homem que não sabe agradecer” no modo hard?
— “Homem que não sabe agradecer” me parece mais certo. E tem voz grossa. E um olhar… — calei na hora, irritada comigo mesma.
— Ahá! — Mia sorriu — Olhar de problema, já entendi. E o que você vai fazer?
— Vou cantar, ganhar dinheiro e fingir que a minha vida é uma comédia romântica barata, sem mafioso, sem tiro e sem olhar que faz a gente esquecer a gramática.
Pete saiu do escritório limpando as mãos num pano, o bigode dele sempre com cara de “já vi coisa pior”.
— Você está brincando com a minha sanidade, menina. — ele reclamou, mas os olhos estavam molhados — Quase morre e me manda uma mensagem? Uma?
— Pete, eu tô aqui. E com todos os pontos ainda no lugar.
— Pensa que eu não tenho coração. Tenho e ele é fraco. — ele resmungou — Vai precisar de quantos dias?
— Dois, três. Vou seguir as recomendações, nada de gritar, nada de carregar peso. Cantar eu consigo, mas quero respirar primeiro.
— Respira. O palco te espera. Mas não some de novo, ouviu? — Ele apontou o dedo, aquele dedo que já demitiu quinze bandas.
— Eu prometo.
— E outra… — ele acrescentou, voz baixa — se aparecer qualquer cara estranho te seguindo, você fala comigo. Eu tenho amigos grandes. E bravos.
— Já tenho “amigos grandes e bravos” demais. — soltei.
Mia escutou.
— Como assim?
Mordi a língua. Eu não sabia se era coisa da minha cabeça, mas… desde que saí do hospital, tive a sensação de estar sendo observada. Não de um jeito escancarado, mas aquele desvio de olhar que chega sempre um segundo depois, aquele reflexo no vidro da loja, aquela sombra que desacelera quando você desacelera.
— Vocês vão rir… — comecei, e Mia já coçou o queixo com a caneta — mas acho que tem gente me seguindo.
— Rir? — Pete quase derrubou a bandeja — Eu vou é ligar pra polícia.
— Calma. — pedi — Não é perseguição de filme. É… presença. Ontem, no mercado, um cara com boné e jaqueta preta ficou olhando muito para as prateleiras e zero pros preços. Hoje, no metrô, o mesmo boné e a mesma jaqueta em outro corpo. No café, a barista olhou por cima do meu ombro e trocou um aceno com um sujeito parado na esquina. Pode ser paranoia. Pode ser coincidência. Ou pode ser o “namorado” dando um jeito de me vigiar.
Mia apertou os olhos.
— Ele pagou sua conta. Ele apareceu no seu quarto com cara de poucos amigos. Essa vibe de “te protejo sem te perguntar” combina com ele. Tem cheiro de “à paisana”.
— Se for isso, é invasivo. — Pete interferiu — E perigoso. Se tem gente te seguindo, é porque tem gente de olho em quem te segue. Nada de heroína agora, entendeu? Você já fez a parte heroína quando levou um tiro.
— Ok. Vou ser discreta. Só não vou desaparecer.
— Por favor. — Pete suspirou — Minha gastrite agradece.
Nos dias seguintes, minha rotina ficou mais silenciosa. Eu caminhava mais devagar, prestava atenção nas vitrines não pelos vestidos, mas pelos reflexos. Em casa, só bani uma coisa… o medo. Ele é péssimo inquilino, toma o sofá e não paga aluguel.
Na terça, saí do prédio e me deparei com um homem encostado numa árvore, leitura fingida de jornal. O vento quase levava as páginas e ele não virava uma linha. Quando passei, ele ergueu o olhar por um milésimo de segundo. Boné. Jaqueta. Um fone pendurado.
— Bom dia. — falei alto, só pra ver o que acontecia.
— Bom dia. — ele respondeu, polido, sotaque canadense perfeito. E voltou a não ler.
Na quarta, peguei café em um carrinho na esquina. Um sujeito do outro lado da rua mexia no celular. O reflexo do vidro do café me mostrou que a câmera estava virada pra mim. Tem algo acontecendo e eu preciso saber o que é.
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Atualizado até capítulo 43
Comments
Graça Oliveira
A menina com certeza Nikos têm olhos para todos os lados te vigiando.pra saber como é que você está e com quem você anda eo que faz. Ele é maravilhoso. ❤️❤️
2025-09-21
0
Marilena Yuriko Nishiyama
o seu "namorado misterioso" está te protegendo Hewellyn,assim penso eu 🤭🤭
2025-09-05
2
Celma Rodrigues
O "Namorado" misteriosamente está te seguindo.... quer dizer: seus soldados à paisana.
2025-09-05
1