Hewellyn
Eu sorri, ergui o copo e acenei como quem diz: “manda beijo”. O sujeito engoliu seco, guardou o telefone e atravessou como se só quisesse pegar o próximo ônibus… que não parou ali.
— Tá… — sussurrei pro universo — “namorado misterioso”, dá um recado pros estagiários, se querem passar por invisíveis, não usem boné igual.
Quando fiquei muito cansada de pensar, liguei pra minha mãe. Eu vinha evitando, porque não queria preocupar. Mas mãe sente, mesmo de longe. E eu não ia deixar que ela soubesse por outra pessoa. Apertei “chamada de vídeo”.
— “Minha menina!” — ela atendeu com o avental de novo, como se o tempo em casa não andasse — “Tá colorida? Tô vendo o azul da sua blusa e acho que é um milagre, porque eu só te imaginei pálida nos últimos dias.”
— Mãe… aconteceu uma coisa. — A voz saiu menor do que eu queria.
Os olhos dela se estreitaram.
— “Fala.”
Contei sem florear. O bar, os tiros, o estranho, o impulso, o hospital. Ela foi ficando branca. Quando terminei, a mão dela tremia no enquadramento.
— “Volta.” — Foi o primeiro pedido — “Por favor, filha, volta.”
— Mãe…
— “Eu não quero sua coragem agora. Eu quero você aqui, com a gente. Que história é essa de se jogar na frente de bala? Você não é super-heroína!”
— Eu sei. Eu só… não pensei.
— “E esse homem? Quem é esse homem?”
— Um mal-agradecido com conta paga e mania de mandar. — tentei brincar — E com um olhar que… ok, não vou comentar o olhar.
Ela me olhou com aquela mistura de raiva e amor de quem criou uma filha teimosa.
— “Volta, Hewellyn. O Canadá é grande demais pra engolir você.”
— Mãe, eu não posso voltar correndo só porque o destino quis me derrubar. Se eu voltar agora, eu não volto por vontade. Eu volto por medo. E eu não tenho medo de viver. Nem de tentar.
— “Você quase morreu.”
— Quase. E não morri. Isso significa que ainda tem alguma coisa me esperando aqui. Nem que seja minha própria voz. Eu prometo ser cuidadosa. Eu prometo ligar todo dia. Eu prometo não atravessar a rua sem olhar. E eu prometo que, se eu sentir que está insuportável, eu volto sozinha, de cabeça erguida… — respirei — mas hoje eu fico.
Ela silenciou. Enxugou os olhos com o pano de prato.
— “A teimosia é da sua avó.” — Sorriu fraco — “E o coração, o meu. Eu não posso amarrar suas asas. Só posso pedir pra você voar baixo enquanto o vento estiver forte.”
— Eu juro.
— “E outra coisa, se esse homem aparecer, você olha bem pra cara dele e diz: “minha mãe tá me vigiando do Brasil”.”
— Vou mandar um áudio com sua voz.
— “Mando mesmo.” — ela disse, pegando o celular — “Moço, se minha filha piscar, eu apareço na sua casa de chinelo.”
Eu ri alto, a primeira risada solta desde o hospital.
— Te amo, mãe.
— “Te amo mais. Se cuida.”
Desliguei, respirei e deixei meu peito descansar. Eu não era uma mártir. Eu só era teimosa. E teimosia, às vezes, salva.
Cinco dias depois, decidi voltar ao bar. Coloquei um vestido preto simples, botas, um batom para enganar a palidez. Levei o violão na capa surrada e a minha vontade de me sentir viva.
Assim que entrei, Pete fingiu que não me viu. Aí viu demais.
— A senhorita acha que é o quê? Estrela internacional? Some, ressurge linda e acha que eu não fico com gastrite?
— Pete… — comecei.
— Não fala! — Ele ergueu a mão — Primeiro: parabéns por não ter morrido. Segundo: parabéns por me fazer querer morrer. Terceiro: você tem um set hoje? Porque se você disser que não, eu caio no chão e finjo um desmaio dramático.
Mia, atrás do balcão, bateu palmas.
— Desmaia, Pete! A gente filma!
— Tenho um set, sim. — respondi, rindo — Mas quero pegar leve. Nada de agudos de arrebentar costura.
— Leve. — ele repetiu, anotando algo num papel — Leve é viver sem tiroteio. O resto a gente improvisa.
Ele se aproximou, mais sério, baixinho:
— Se alguém te incomodar… você fala comigo.
— Falo. Prometo.
Mia me puxou e cochichou:
— Os bonés estão lá fora.
— Quantos?
— Dois. Turno rotativo, ao que parece. Um é bonito, inclusive. Uma pena trabalhar de sombra.
— O “namorado misterioso” tem RH exigente, pelo visto.
— Eu quero ver a cara dele.
— Eu também. — confessei, antes que meu orgulho gritasse “mentirosa”.
Subi no palco. O microfone chiou, o violão respondeu. Eu testei uns acordes, pedi um pouco mais de retorno. Pete acenou do fundo. A plateia era pequena, mas familiar. Duas mesas de casal, três amigos bêbados comportados, uma senhora sozinha que sempre pedia:
— “...aquela do Ben E. King”.
— Boa noite. — falei no microfone, e a voz não tremeu — Meu nome é Hewellyn, eu sou do Brasil e… eu tô muito feliz de estar aqui. Vocês não fazem ideia.
Um “woo!” disperso veio do fundo. Mia bateu copo no balcão, nossa convenção particular de “vai, garota”.
Comecei com “Stand by Me” porque a senhora merecia. Depois fui para outra música em versão lenta. Eu cantava e, entre uma nota e outra, meus olhos contavam o resto, pelo vidro da porta, uma silhueta com boné passava. Ficava. Andava. Voltava. No fim da segunda música, outra silhueta, do outro lado.
Terminei a primeira entrada sob aplausos generosos. Desci do palco, o coração quentinho sem pedir licença. Mia me entregou água.
— Tá tudo bem?
— Tá. E estranho.
— O estranho você já deu conta. O resto você canta.
— Que frase boa. — eu ri — Vou tatuar: “o resto você canta”.
— Tatuagem eu não recomendo, sua pele está em recuperação. Mas o lema eu assino.
Meu celular vibrou, uma mensagem da minha mãe, deve ser porque liguei e depois desliguei.
— “Ligou para dizer que me ama?”
— “Sim.”
Respondi com um coração e um vídeo curtinho do bar. Ela mandou um áudio:
— “Se alguém olhar torto, eu atravesso esse oceano nadando.”
Quase chorei rindo.
Na segunda entrada, arrisquei uma música minha. Eu a fiz no quarto minúsculo, olhando para a janela pequena, pensando em como a gente insiste em caber nos lugares errados. Cantei devagar, cada palavra escolhida a dedo:
— Se o mundo gira torto, eu danço torto com ele,
e se o frio beija forte, eu beijo o frio de volta.
Prometi pra mim mesma, não corro da queda,
eu levanto, pego a queda no colo e digo: volta pra casa.
Alguém se emocionou. Não fui eu, eu já tinha chorado o suficiente, mas senti um alívio danado. Quando a música acabou, um homem do canto gritou:
— “brava!” — com sotaque forte. Eu agradeci baixinho, e a felicidade coube inteira no meu peito, mesmo com a costura do ombro puxando.
Desci do palco novamente e fui até a porta, “por acaso”. Abri, só um pouco, pra deixar o ar gelado entrar. Do outro lado, o boné me olhou. Eu olhei de volta.
— Boa noite. — falei, simpática demais pra quem estava sendo vigiada.
— Boa noite. — ele respondeu, sem agressividade, as mãos no bolso do casaco.
— Trabalhando?
— Sempre tem alguém trabalhando. — ele respondeu — E sempre tem alguém sendo cuidado sem saber.
— Eu prefiro saber. — devolvi, com uma sobrancelha levantada.
Ele segurou o riso que ameaçou sair.
— Anotado.
Fechei a porta, o vento cortou mais um pouco da minha coragem. Mia apareceu do nada.
— Ele falou com você?
— Falou bonito. Não disse nada.
— Padrão “sombra com poesia”.
— Exatamente.
Voltei ao palco para a última música. A senhora sozinha pediu mais uma vez, sussurrando, “a do Ben E. King de novo”. Cantei como se fosse reza. No final, aplaudiram, Pete bateu palma duas vezes e apontou para o relógio:
— “Acabou, vai descansar”.
Guardei o violão, peguei o casaco. Na calçada, respirei. Era noite de céu limpo, ou o mais próximo disso que Toronto permite. O ar era cortante, mas tinha alguma coisa boa nele. Talvez fosse só a sensação de estar viva.
Atravessei a rua com cuidado, de olho nos reflexos das vitrines. O boné do lado esquerdo andou quando eu andei. O do lado direito também. Eu parei. Eles pararam. Eu ri sozinha.
— Tá bom, “namorado misterioso”... — falei baixo, pra mim, para a cidade, para o vento que carrega recados — recado recebido. Eu tô sendo cuidada. Mas eu também tô olhando.
Segui em frente, ajustando o cachecol, a mão no violão, o ombro reclamando baixinho como quem pede repouso. No fim do quarteirão, um SUV preto estacionado do outro lado da pista fez o motor ronronar. Os vidros escuros me encararam sem expressão.
Eu ergui o queixo, como quem diz: “eu não corro”. E caminhei até meu prédio, com a certeza engraçada e irritante de que, por trás de algum vidro, alguém que não sabe dizer “obrigado” estava me vigiando, do jeito dele.
E, pela primeira vez desde o hospital, essa certeza não me deu pânico. Me deu raiva… e um fio de curiosidade perigosa.
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Atualizado até capítulo 43
Comments
Celma Rodrigues
O "namorado mistérioso" foi descoberto. Ela é perspicaz e os soldados não passaram despercebidos. Detrás dos vidro pretos está ele: Nikos.
2025-09-05
3
Marilena Yuriko Nishiyama
se vc soubesse quem é o seu "namorado misterioso" garanto que vc iria surtar
2025-09-05
3
Graça Oliveira
Eita lê lê o namorado misterioso está te vigiando para que não aconteça mais nada com você. 🥰❤️
2025-09-21
0