Guerra e Sangue.

A mansão estava silenciosa. Só o vento que entrava pelas janelas fazia as cortinas balançarem, trazendo aquele cheiro salgado do mar que abraçava o Vidigal. Do lado de fora, a comunidade dormia inquieta, porque todo mundo sabia: o Pavãozinho não falava em vão. Quando eles diziam que iam subir, era porque estavam prontos pra guerra.

Eu tinha passado o dia todo reforçando posições com Lucca e Luiza, verificando rádios, armas, suprimentos. À noite, Caio e Diego tinham se instalado na casa. Era melhor assim. Eles não eram convidados: eram aliados em território de risco. A presença deles ali já servia de recado pro morro inteiro de que eu não estava sozinha.

Caio ficou no escritório, revisando relatórios e falando baixo no rádio com o pessoal do Alemão. Diego, por outro lado, parecia não ter descanso. Rodava pela mansão em silêncio, conferindo cada canto, cada rota de entrada e saída. Eu percebia os olhos dele em tudo, como se estivesse fotografando o espaço na mente e prevendo cada movimento de ataque.

Lorenzo dormia seguro no cofre, junto com a babá. Só de saber que ele estava protegido por ela — que já tinha cuidado de mim quando eu mesma era criança — eu conseguia respirar um pouco. Mas paz de verdade? Não existia.

Quase duas da manhã. Eu estava deitada, não dormindo, só escutando os sons do morro. A cidade lá embaixo parecia tão calma que era quase um insulto. Me virei na cama, pensando em quando seria a primeira movimentação, e foi nesse instante que o rádio chiou.

— Rainha, atenção! Tiros… na ladeira do depósito! Pavãozinho avançando! É agora!

Meu corpo reagiu antes da mente. Levantei num pulo, joguei o lençol pro lado e corri até o armário. O vestido branco de algodão que eu tinha usado já estava no chão em segundos. Passei o macacão preto colado, que me dava mobilidade total, e em seguida o colete à prova de balas. Sentia o peso pressionando meu peito, mas também a segurança de estar pronta pro que viesse.

Peguei o fuzil, engatei a bala na câmara e ajeitei a mira. Me olhei no espelho por um segundo: olhos frios, decididos. Não era vaidade. Era sobrevivência.

Ao abrir a porta do quarto, Diego já estava lá, como se tivesse previsto. De colete, fuzil na mão, a postura ereta, olhar de soldado. Ele não parecia alguém que tinha acabado de acordar; parecia alguém que já estava esperando o chamado.

— Vamos — foi tudo o que disse, a voz grave, seca.

Caio apareceu logo atrás dele, com a pistola em punho, o semblante calmo de quem já tinha visto aquele filme mil vezes. Não havia pânico, só estratégia.

Descemos juntos. Cada degrau parecia ecoar mais alto que o som dos tiros que já chegava até nós. O morro estava vivo, respirando guerra, cada viela acesa pelo clarão das balas.

No portão da mansão, o vento frio da madrugada bateu no meu rosto. Respirei fundo e me permiti pensar em Lorenzo por um único segundo. Ele estava seguro. A babá nunca falharia comigo. Com essa certeza, segurei o fuzil com ainda mais firmeza.

— Eles tão atacando por três frentes — a voz de Lucca veio pelo rádio. — Querem quebrar a gente pelo cansaço.

— Eles vão quebrar a cara. — respondi, fria.

Seguimos pela ladeira. Diego assumiu a dianteira, ágil, cobrindo os cantos com precisão. Caio se posicionou ao meu lado, os olhos atentos, guiando com experiência. Eu fechava o trio, pronta pra dar o tiro que fosse necessário.

O primeiro confronto foi rápido. Três homens tentavam subir por uma viela lateral. Diego atirou duas vezes, certeiro, e derrubou dois deles. O terceiro tentou correr, mas eu puxei o gatilho antes que desse mais de cinco passos. O estampido ecoou alto, e o corpo caiu seco no chão de paralelepípedo.

Seguimos. O cheiro de pólvora já tomava o ar, queimando o nariz. A adrenalina deixava o sangue quente, o coração disparado, mas minha mente estava fria como gelo. Não havia espaço pra medo.

Na esquina do beco da padaria, mais cinco do Pavãozinho apareceram. Dessa vez foi Caio quem se adiantou, disparando sem errar. Três foram pro chão na hora. Eu e Diego cobrimos os outros dois, que recuaram cambaleando, atirando a esmo.

— Eles tão perdidos — murmurou Caio. — Vieram achando que iam pegar a gente dormindo.

Avançamos mais. O tiroteio seguia em outros pontos do morro. Pelo rádio, Lucca e Luiza atualizavam as movimentações: a galera do Vidigal segurava firme, e o reforço do Alemão tava espalhado onde precisava.

Eu respirei fundo, apertando o fuzil. O macacão grudado na pele já estava encharcado de suor, mas eu me sentia leve. Aquilo era o meu trono, minha arena. O morro era meu, e quem ousasse pisar nele sem respeito ia conhecer o preço.

Depois de quase meia hora de troca de tiros, o silêncio começou a voltar. O Pavãozinho recuava, derrotado. A madrugada ainda carregava o eco das balas, mas os becos do Vidigal permaneciam intactos.

Caio abaixou a arma, respirando fundo.

— Eles não vão tentar de novo tão cedo.

Diego não falou nada. Guardou o fuzil, os olhos ainda atentos, como se esperasse uma última surpresa. Mas no fundo, eu sabia: até ele reconhecia que aquela noite tinha sido nossa.

Voltei pra mansão sem abaixar a guarda. A primeira coisa que fiz foi abrir o cofre. Lorenzo estava lá dentro, dormindo tranquilo, a respiração calma. Passei a mão nos cabelos dele, beijei sua testa e fechei de novo a porta blindada.

Do lado de fora, Caio e Diego estavam na varanda, olhando o morro ainda fumegante. Me juntei a eles, fuzil ainda nas mãos, o peito pesado de cansaço, mas firme de orgulho.

— O Vidigal não cai — disse, olhando a favela iluminada pela lua. — Nem hoje, nem nunca.

E naquela madrugada de sangue, eu sabia: a Rainha do Vidigal tinha acabado de provar que reinava sozinha, mas com aliados certos, ninguém ousaria derrubar o meu trono.

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