A madrugada envolvia Drakenshold em um manto úmido quando os portões do palácio se abriram para a saída das famílias. O brilho dourado das tochas foi engolido pela escuridão, e as carruagens começaram a partir uma a uma, deixando para trás o eco distante da música e do vinho.
A cidade dormia inquieta. Os becos encharcados refletiam a luz fraca da lua, e o som das rodas de ferro misturava-se ao galope apressado dos cavalos. Para os cidadãos comuns, aquela noite havia sido apenas mais uma celebração da nobreza. Mas para quem estava dentro do palácio, a festa tinha deixado cicatrizes invisíveis.
Na carruagem dos Morthain, o silêncio era tão denso quanto a noite. Lorde Edric permanecia com os olhos fixos na janela, os punhos cerrados sobre os joelhos. Seus irmãos cochichavam entre si, rindo de provocações que haviam lançado aos rivais durante o banquete.
Caelan, sentado em frente ao pai, não abria a boca. As velas dentro da carruagem tremeluziam, revelando em seus olhos o conflito que ele não ousava confessar.
— Você foi fraco. — disse Edric de repente, sem virar a cabeça.
Caelan ergueu o olhar. — Fraco?
— Quando aquele aprendiz ousou se erguer contra nós, você deveria ter deixado que o sangue dele manchasse o chão. Um Morthain nunca recua.
Os tios assentiram, satisfeitos com as palavras do patriarca. Mas Caelan manteve a calma. — Não era o lugar. Nem a hora.
— Não importa. — Edric virou-se, finalmente, os olhos como lâminas. — Um inimigo é sempre o lugar. Sempre a hora. Lembre-se, filho: corvos só sobrevivem porque não perdoam.
Caelan sustentou o olhar do pai por alguns segundos, mas abaixou-o em seguida. Não por concordar, mas porque sabia que discutir era inútil. No fundo, porém, uma pergunta o consumia: se derramarmos sangue em cada salão, em cada esquina, o que restará de nós além do ódio?
Do outro lado da cidade, a carruagem dos Valebryn deslizava silenciosa pelas ruas de pedra. O interior era luxuoso, forrado de veludo escarlate, iluminado por cristais encantados que projetavam uma luz suave. Lady Selene estava imóvel, o rosto esculpido como mármore.
Lyanna, ao lado da mãe, não conseguia evitar que seus pensamentos retornassem ao corredor do palácio, ao instante em que quase houve uma briga. Vira o rapaz Morthain conter o próprio soldado, a mão firme segurando o braço que estava pronto para matar.
Era estranho. Sempre ouvira que os corvos eram feras sedentas, incapazes de raciocínio. Mas aquela atitude não se encaixava no retrato que lhe pintaram.
— Você percebeu? — perguntou Selene, quebrando o silêncio.
Lyanna piscou, surpresa. — O quê?
— O filho de Edric. — respondeu a mãe, os olhos semicerrados. — Ele é diferente. Mais contido. Mais observador. Isso o torna mais perigoso do que todos os outros juntos.
O coração de Lyanna deu um salto. A mãe falava com a frieza de quem já estudava o inimigo como se fosse uma peça de tabuleiro. Mas para a jovem, a lembrança do olhar de Caelan não parecia apenas uma ameaça. Parecia… outra coisa. Algo que não deveria pensar.
— Você precisa entender, filha. — continuou Selene. — Cada Morthain que respira é uma adaga apontada para o nosso peito. E adagas só têm uma função.
Lyanna apertou as mãos no colo, fingindo concordar. Mas dentro dela, um vazio começava a se abrir.
Enquanto as carruagens se afastavam do palácio, a cidade parecia escutar o que os muros não diziam. Os becos carregavam os rumores da noite: os olhares trocados, as provocações, o quase confronto. Para os comerciantes, era apenas fofoca de mercado. Para os soldados, era um sinal de que logo haveria trabalho.
E para os herdeiros, era um fardo.
Caelan voltou à mansão Morthain pouco antes do amanhecer. O casarão cinzento, com torres afiadas e janelas estreitas, parecia mais uma fortaleza do que uma casa. Entrou em silêncio, ignorando os cumprimentos dos guardas. No quarto, diante do espelho rachado, tirou o casaco pesado e deixou-o cair no chão.
Encarou a si mesmo, como se buscasse respostas no reflexo. Mas tudo o que viu foi o corvo do brasão bordado em sua camisa. Um símbolo que o prendia, uma marca que o definia antes mesmo de ele poder escolher.
Do outro lado da cidade, Lyanna também estava sozinha em seus aposentos. A lua atravessava as cortinas semiabertas, iluminando o grimório deixado sobre a mesa. Ela não conseguia se concentrar nas páginas. Cada vez que fechava os olhos, voltava àquela noite.
A dança. O corredor. Os olhares.
Sacudiu a cabeça, irritada consigo mesma. Não era hora para distrações. Precisava ser uma Valebryn, sempre alerta, sempre fria. Mas o silêncio do quarto parecia sussurrar que, no fundo, algo já havia mudado.
E assim, enquanto a cidade mergulhava no sono pesado, dois jovens de famílias inimigas encaravam sozinhos seus próprios fantasmas.
Do lado dos Morthain, o peso de um pai que exigia sangue em cada gesto.
Do lado dos Valebryn, a vigilância de uma mãe que via ameaças até no silêncio.
Ainda não havia amor. Não havia sequer confiança. Mas havia um fio invisível, fino como o sopro do vento, que começava a se estender entre eles. Um fio que, cedo ou tarde, alguém tentaria cortar.
E quando isso acontecesse, Drakenshold conheceria um tipo diferente de guerra.
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Atualizado até capítulo 45
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