As lâminas invisíveis

O salão parecia ainda mais abafado conforme a noite avançava. O vinho escorria sem parar, as músicas mudavam, mas o ar estava impregnado de algo que não se dissipava: ódio contido.

De um lado, os Morthain ocupavam sua ala da mesa principal, todos vestidos de preto, suas presenças sólidas como muralhas. Do outro, os Valebryn reluziam em vermelho e dourado, ostentando não apenas riqueza, mas também a confiança fria de quem manipula sombras.

Entre eles, um espaço vazio no centro da mesa — um vão que, mesmo sem cadeiras, parecia mais pesado que pedra. Era simbólico, o espaço da paz que nunca se preenchia.

Caelan sentia os olhos do pai queimando sua nuca cada vez que desviava o olhar do prato. Não ousava procurar novamente a figura que lhe atravessara a mente desde a dança. Em vez disso, mantinha os ombros retos, a postura firme e o silêncio treinado.

— Veja como se portam, Caelan. — murmurou Edric, erguendo o cálice em direção aos rivais. — Serpentes, cada uma delas. Lindas, venenosas. E todos que se aproximam delas acabam mortos.

Caelan não respondeu. Apenas observou, por um instante, a forma como Lady Selene gesticulava ao conversar com um mercador, os dedos dela sempre em movimento, como se manipulasse fios invisíveis. Uma mulher que não precisava erguer a voz para comandar um exército.

— E lembre-se. — continuou Edric, sem perceber o desvio do filho. — Um Morthain não esquece. Eles roubaram terras, alianças, até sangue nosso. O dia em que baixarmos a guarda será o dia em que deixaremos de existir.

Caelan assentiu, engolindo o gosto amargo do vinho. A lição era sempre a mesma, repetida até cansar. Mas o olhar do pai era tão duro que tornava impossível discordar.

Do outro lado, Lyanna mantinha o sorriso frio que aprendera com a mãe. Não sorria de verdade; apenas curvava os lábios como máscara.

— Os corvos parecem especialmente inchados hoje. — comentou Lady Selene, em tom baixo, mas alto o suficiente para os vizinhos ouvirem. — Deve ser difícil fingirem nobreza quando cheiram a ferro e pólvora.

Alguns riram discretamente. Lyanna, porém, permaneceu em silêncio. Sabia que cada palavra ali era uma arma, e o banquete inteiro era apenas um campo de batalha disfarçado de festa.

Ela ergueu os olhos e, por acaso ou não, encontrou o olhar pesado de Edric Morthain. O patriarca a encarava com a dureza de quem gostaria de esmagar todos à mesa. Por reflexo, a garota desviou, mas sentiu um arrepio subir-lhe a espinha.

A tensão aumentou quando o mestre de cerimônias, já embriagado, pediu um brinde à união do reino. As taças se ergueram, mas os olhares atravessaram a mesa como lâminas afiadas.

— À união. — disse Lady Selene, com veneno escondido no sorriso. — Mesmo quando uns sabem apenas destruir e outros sabem criar.

— À união. — respondeu Edric, sem disfarçar o desprezo. — Mesmo quando uns vivem de enganar e outros de lutar de verdade.

O cristal das taças tilintou, mas o som não foi de celebração. Foi de ameaça.

Mais tarde, quando a música recomeçou, a rivalidade deixou de ser apenas palavras. Um jovem soldado Morthain e um aprendiz de mago Valebryn se esbarraram no corredor lateral. O choque foi pequeno, mas o silêncio que se seguiu foi mortal.

— Abra os olhos, serpente. — cuspiu o soldado, empurrando o rapaz de volta.

— Cuidado, corvo. — retrucou o mago, as mãos já faiscando de energia. — Ou posso arrancar suas asas.

Em segundos, um círculo se formou em volta. Soldados de um lado, aprendizes do outro, prontos para transformar o corredor em um campo de batalha.

Caelan chegou rápido, segurando o braço do soldado com força. — Não aqui. — disse, a voz firme. — Eles querem uma desculpa. Não vamos dar.

Do outro lado, Lyanna surgiu como uma sombra, a mão sobre o ombro do mago. — Guarde sua magia. — sussurrou. — Este salão não é campo para sangue.

Por um momento, os dois líderes improvisados — Caelan e Lyanna — se entreolharam sem querer. Não havia ternura ali, apenas a compreensão do perigo. Ambos sabiam: bastava uma faísca para o banquete virar guerra.

Os dois recuaram ao mesmo tempo, e seus aliados, embora relutantes, obedeceram. O corredor se dispersou em murmúrios, mas o veneno da rivalidade só se espalhava ainda mais.

De volta ao salão principal, a música parecia estranhamente mais alta. Talvez fosse apenas para abafar o que quase acontecera.

Edric lançou um olhar fulminante ao filho. — Você devia ter deixado. Sangue Valebryn derramado é sempre um presente para os deuses.

Lady Selene, do outro lado, acariciava distraidamente o cálice. — Estão mais impetuosos do que nunca. Precisamos vigiar. Um corvo desesperado é mais perigoso que um corvo faminto.

Lyanna, no entanto, ainda sentia o peso da cena. A mão de Caelan segurando o braço do soldado, firme, controlada. Ele não parecera um bruto em busca de sangue, mas alguém tentando impedir que o fogo começasse. E isso, paradoxalmente, a deixava ainda mais inquieta.

A noite seguiu, mas a divisão no salão era clara. Riam, brindavam e dançavam, mas os olhos não paravam de vigiar.

O banquete não terminara em sangue. Mas todos sabiam: as muralhas de Drakenshold não segurariam essa tensão para sempre.

E quando ruíssem, não haveria mais música capaz de esconder o som da guerra.

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