O sol caía lentamente sobre o Morro de Santa Fé, tingindo de dourado as copas das árvores e espalhando reflexos de cobre sobre o lago. Para os mais velhos do clã, aquele lugar era mais que um espelho de águas profundas — era sagrado, misterioso, um território que exigia reverência. Mas Dimitri, ainda jovem, acreditava que o mundo estava ao alcance das suas mãos e que nada poderia dobrar sua ousadia.
O comércio de peixes sustentava parte importante do povoado. Todas as manhãs, os homens do clã partiam em pequenas embarcações improvisadas, voltando com redes cheias que alimentavam famílias inteiras e garantiam lucro nas feiras locais. Dimitri, desejoso de mostrar sua coragem, quis provar-se mais hábil que os demais.
— Esse lago não me mete medo — disse a um primo que o acompanhava, um sorriso convencido nos lábios. — Hoje trarei mais peixes que todos.
O primo riu, abanando a cabeça. — Cuidado, Dimitri. As águas são traiçoeiras.
Mas Dimitri não o ouviu. A juventude o tornava surdo aos conselhos, e o orgulho, cego aos perigos.
Entrou no lago com passos firmes, sentindo a água subir-lhe pelos tornozelos, depois pelos joelhos. O sol faiscava na superfície como mil espelhos quebrados. Ele acreditava que nada poderia vencê-lo. Até que a natureza decidiu lembrá-lo de sua pequenez.
Um passo em falso. O fundo traiçoeiro cedeu sob seus pés. O corpo tombou. A água fechou-se sobre sua cabeça num golpe gelado. Em segundos, o ar faltou, e o desespero tomou-lhe o peito. Dimitri lutava, agitava os braços, mas cada movimento o arrastava mais para baixo. Engoliu água. Tossiu. Os olhos se arregalaram diante da escuridão líquida.
“Vou morrer...” foi o último pensamento que conseguiu formar.
Foi então que sentiu mãos firmes prendendo-lhe o braço, puxando-o com uma força quase sobre-humana. Entre turbilhões de bolhas e respingos, uma sombra ergueu-o das profundezas. Quando o ar invadiu de novo seus pulmões, ele engasgou violentamente, cuspindo água, agarrado à margem como um náufrago que se recusa a soltar a vida.
Aos poucos, o mundo voltou a se firmar diante dos seus olhos. E ali, diante dele, estava Rami, o chefe do clã. Um homem de presença imponente, de olhos negros tão penetrantes que pareciam atravessar a alma. A força em seus braços e a firmeza em seu olhar faziam dele mais que um líder — parecia uma lenda viva.
Dimitri caiu de joelhos na lama, trêmulo, encharcado, mas vivo. Com o coração martelando no peito e lágrimas de gratidão misturando-se à água que ainda escorria de seu rosto, ele ergueu os olhos para Rami.
— Tu me salvaste… — a voz saiu rouca, quebrada. — Eu devia estar morto.
Rami não respondeu de imediato. Apenas o observava, sério, como se esperasse algo mais.
Foi então que Dimitri, tomado pelo fervor da vida recém-recuperada, pronunciou as palavras que mudariam tudo:
— Pela vida que me devolveste, Rami, juro diante dos céus e da nossa padroeira Santa Sara Kali… que, se um dia eu tiver uma filha, a primeira menina que nascer em meu lar será tua dádiva. Ela será entregue à tua família, unida ao teu filho em matrimônio.
O silêncio se espalhou pela margem. O primo de Dimitri arregalou os olhos, incapaz de acreditar no que ouvira. Palavras assim não podiam ser retiradas — uma promessa feita diante da fé era tão forte quanto qualquer juramento sagrado.
Rami estreitou o olhar. Havia algo nele que Dimitri não soube decifrar — orgulho, talvez, ou o brilho calculista de quem vê o destino se moldar ao seu favor. Então, assentiu com um leve aceno de cabeça.
— Que assim seja. — Sua voz ecoou grave, como o peso de uma sentença.
E foi naquela tarde marcada pelo sol e pela promessa feita por Dimitri, que uma vida pode ser salva, enquanto outra que ainda nem existia foi fadada e assumir um compromisso que não lhe foi desejado.
O tempo correu veloz desde aquela tarde no lago. O clã prosperava, e Rami, firme como um pilar, liderava todos com a autoridade que lhe era própria. Logo tomou para si uma esposa, Esther, a mais bela entre as mulheres de Santa Fé. Seus olhos escuros eram profundos como a noite, seus cabelos longos reluziam sob o sol, e sua presença iluminava até os dias mais cinzentos do povoado.
Para Rami, ela era um troféu digno de seu posto. Para Esther, ele era o destino inevitável de quem nascera sob as regras implacáveis do clã.
Do casamento, nasceu uma menina — tão frágil e preciosa que, ao vê-la pela primeira vez, Esther sentiu o coração transbordar de amor. A chamou de Alina, “luz”, pois acreditava que aquela criança iluminaria sua vida.
Mas Rami sabia. A promessa feita a Dimitri ardia em sua memória como ferro em brasa: aquela filha não era sua para sempre. Pertencia a outro destino, a outra casa, a outro homem.
Nos primeiros meses, Esther mal se afastava da filha. A menina era sua alegria, seu motivo de viver. Mas quando Alina completou um ano, Rami tomou a decisão que mudaria tudo.
— Ela vai para o castelo — anunciou, firme, sem titubear.
Esther arregalou os olhos, apertando a menina contra o peito. — O quê? Não! Ela é minha filha!
— É a promessa — respondeu ele, frio. — Foi jurada diante de Santa Sara Kali. E o que é prometido, cumpre-se.
O choro de Esther rompeu a noite como um lamento ancestral. Ela implorou, suplicou de joelhos, mas Rami permaneceu inabalável. No dia em que os homens do clã vieram buscar a menina, Esther lutou como uma loba acuada. Mas nada pôde fazer.
Com lágrimas escorrendo pelo rosto, viu sua filha ser levada nos braços de uma das mulheres mais velhas. Os pequenos dedos de Alina ainda se agitavam no ar, como se procurassem a mãe.
Esther tentou alcançá-la, gritando o nome da filha até a voz se desfazer.
Rami apenas a fitou com indiferença e disse, num tom cortante:
— Poderás ter muitas outras. Que diferença uma fará?
Aquelas palavras dilaceraram Esther como lâminas invisíveis. Desde aquela noite, ela chorou até não ter mais forças, embalada pela ausência da filha. Cada riso de criança que ecoava no clã era uma ferida aberta. Cada amanhecer sem Alina, uma morte lenta.
E assim, a menina cresceu longe do colo da mãe, criada entre as paredes do castelo, sob o olhar austero da família do chefe do clã. Esther, por sua vez, nunca mais perdoou o marido — nem a si mesma — por não ter podido salvar sua pequena luz.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 29
Comments
Paula Albertão
/Angry//Angry//Angry//Angry//Angry//Angry//Angry/
2025-08-29
1
Paula Albertão
fiquei com dó 😔😔😔
2025-08-29
1
Paula Albertão
lugar lindoooo
2025-08-29
1