O sol nasceu cinzento. A cidade parecia mais pesada do que nunca. Léo acordou tarde, o corpo mole, a mente ainda impregnada pelo pesadelo da noite anterior. Cada vez que lembrava da frase solta — “essa cidade é um inferno” — sentia um arrepio percorrer-lhe a espinha. O acidente na esquina, os gritos, as sirenes... tudo parecia ecoar ainda em seus ouvidos.
Passou boa parte da manhã olhando para o teto, sem coragem de sair da cama. O mundo lá fora estava diferente. Não era apenas a rua tumultuada, os vizinhos falando do acidente, a rotina da cidade: era a sensação de que cada coisa que dissesse poderia alterar tudo ao redor.
Seus lábios estavam pesados. As palavras tinham adquirido um valor assustador. Já não eram só sons: eram sementes.
Levantou-se lentamente, foi até a cozinha, fez café amargo e sentou-se à mesa com o caderno aberto. As três frases escritas ainda brilhavam como sentenças sagradas:
A realidade é reflexo da crença.
O tempo é um círculo.
As palavras criam o mundo.
Olhando para elas, Léo respirou fundo.
— Se eu posso destruir com uma frase… será que também posso criar algo bom?
Essa pergunta ficou rodando na mente como um disco riscado.
Até então, os efeitos tinham surgido meio ao acaso, frutos da curiosidade ou da distração. Mas, e se ele conseguisse dirigir o poder? Usá-lo para transformar uma situação ruim em algo melhor?
O pensamento trouxe um lampejo de esperança.
E, ao mesmo tempo, uma sensação de responsabilidade que pesava como chumbo nos ombros.
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Naquela tarde, Léo saiu de casa. Precisava respirar, caminhar, observar. Talvez encontrasse a oportunidade de testar o poder de forma consciente.
A cidade estava viva como sempre — buzinas, vendedores ambulantes, motos costurando no trânsito. Mas para ele, cada som e cada rosto carregavam agora um brilho oculto. Como se o mundo estivesse esperando o próximo comando.
Parou numa praça. Sentou-se num banco de madeira e observou. Crianças brincavam em balanços enferrujados, idosos conversavam debaixo de uma árvore, pombos disputavam restos de pão.
Foi quando viu uma cena que o tocou.
Uma senhora idosa, de cabelos brancos presos num coque simples, atravessava a praça devagar. Carregava duas sacolas pesadas de supermercado. As mãos tremiam, e a cada passo ela parecia prestes a tropeçar. Pessoas passavam por ela, indiferentes, apressadas demais para notar.
Léo a observou por longos segundos. A imagem queimava seu peito.
— É isso… — sussurrou. — Vou tentar.
Respirou fundo, sentiu o coração acelerar. Não podia ser como antes, um comentário jogado ao vento. Precisava de intenção, de clareza.
Fixou o olhar na senhora e falou em voz baixa, mas com convicção:
— Alguém vai ajudá-la.
A frase saiu como uma prece.
Por um instante, nada aconteceu. A velha continuava andando, arrastando as sacolas, ofegante. Léo sentiu o estômago embrulhar.
Será que não funciona quando é para os outros?
Mas então, de repente, um rapaz que caminhava distraído pelo lado oposto da praça parou. Olhou para a idosa, largou o celular no bolso e correu até ela.
— Senhora, deixa eu carregar isso pra senhora.
Ela sorriu, aliviada, e entregou as sacolas. O jovem a acompanhou até o outro lado da praça, conversando, enquanto ela agradecia várias vezes.
Léo ficou parado, observando, com os olhos marejados. Sentiu um nó na garganta.
Tinha funcionado.
Dessa vez, sua palavra trouxe alívio, não caos.
— Eu posso escolher — murmurou. — Posso usar isso para o bem.
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De volta ao apartamento, a mente de Léo estava em ebulição. Caminhava de um lado a outro, falando sozinho, tentando organizar o turbilhão.
— Então é isso… não é apenas um fardo, é também uma dádiva. — Parou diante do espelho intacto. — Posso mudar as coisas. Posso corrigir injustiças pequenas, aliviar dores, ajudar.
Mas junto da esperança, veio também uma sombra.
E se eu errar de novo?
E se uma frase mal colocada causar tragédias?
E se eu não tiver controle suficiente para decidir sempre o certo?
O poder era uma moeda de duas faces. Tinha experimentado ambos os lados em apenas três noites. E agora precisava aprender a lidar com isso antes que fosse tarde.
Acendeu o baseado da noite, sentou-se à mesa com o caderno e escreveu:
> Filosofia da Noite 4: Cada palavra é uma escolha. Toda escolha molda destino.
As letras pareciam pulsar no papel. Ele sabia que não podia mais brincar. Cada frase dali em diante precisaria carregar responsabilidade.
Era o preço de ser ouvinte — e emissor — das leis ocultas do universo.
Encostou-se na poltrona, o corpo relaxando, mas a mente em chamas. Pela primeira vez desde o início daquela jornada, não se sentia apenas espectador.
Sentia-se responsável.
E antes de adormecer, uma última certeza se gravou em sua mente:
“Se minhas palavras podem ferir ou curar, então a boca é meu campo de batalha. E a cada frase, eu decido de que lado estou.”
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Atualizado até capítulo 36
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