O dinheiro ainda estava guardado na carteira de Léo, dobrado em quatro, escondido como um segredo precioso. Ele não tinha coragem de gastar a nota de cinquenta reais que havia encontrado no chão no dia anterior. Podia comprar comida, pagar parte de uma conta de luz, até comprar mais fumo. Mas aquela cédula não era apenas dinheiro: era a prova física de que suas palavras tinham atravessado a linha do delírio para tocar a realidade.
Cada vez que abria a carteira, sentia um arrepio. O papel amarelado, com as marcas de uso e o leve cheiro de rua, parecia irradiar um poder invisível. Era só uma nota — mas também era um espelho. Refletia o que ele dissera. Confirmava que o mundo já não obedecia apenas às leis comuns.
Durante todo o dia, Léo se viu dividido entre euforia e medo. Andava pelas ruas como se o asfalto fosse feito de vidro, prestes a estilhaçar sob seus passos. Olhava para as pessoas, para os carros, para os prédios, e a mesma pergunta não o deixava em paz:
“Será que tudo isso está ao alcance da minha voz?”
De volta ao apartamento, a noite caiu como um manto pesado. O silêncio parecia ainda mais denso que o normal. Léo fechou a janela, deixou a sala em penumbra e acendeu a pequena luminária de mesa. O ritual estava pronto: o caderno à sua frente, o isqueiro em mãos, o baseado enrolado com cuidado.
Olhou as páginas escritas nas noites anteriores. As frases estavam sublinhadas, destacadas, como tatuagens no papel:
A realidade é reflexo da crença.
O tempo é um círculo.
As palavras criam o mundo.
Três frases. Três leis. Três portas abertas que já haviam mudado seu cotidiano.
Léo tragou fundo, sentindo a fumaça queimar os pulmões antes de se dissolver em ondas de calor pelo corpo. Encostou-se no sofá, fechou os olhos e deixou o silêncio vibrar.
Dessa vez, não veio uma nova revelação, não uma filosofia inédita.
O que ecoava era a terceira lei:
“As palavras criam o mundo.”
Ele repetiu mentalmente, como quem ensaia um feitiço.
Se é verdade, então cada palavra pronunciada é uma semente. Algumas germinam em flores, outras em espinhos. A boca é um campo de cultivo invisível.
Léo se levantou devagar, como se o apartamento fosse de repente um palco. Foi até a janela, abriu a cortina e olhou para a rua quase deserta. Apenas postes iluminando o asfalto e o som distante de motores.
— Aposto que daqui a pouco alguém vai passar correndo — disse em voz baixa, quase sem acreditar.
O eco mal havia se apagado de seus lábios quando, na esquina, surgiu um rapaz. Corria ofegante, com uma mochila nas costas, passos rápidos, respiração curta. Passou diante do prédio como se tivesse ouvido um chamado invisível e desapareceu na próxima rua.
Léo recuou, com a boca entreaberta.
— Não… não pode ser tão imediato.
Mas era.
Ele voltou para dentro, andando de um lado a outro. O coração batia acelerado. Sentia-se como uma criança que descobre acidentalmente onde os pais escondem os presentes de Natal — excitado, mas também assombrado.
O poder não estava apenas nos desejos mais intensos, mas em qualquer palavra pronunciada com convicção. E isso era perigoso.
Se cada frase é uma ordem para o universo… quantas vezes eu já falei coisas sem pensar? Quantas vezes reclamei, amaldiçoei, desejei coisas horríveis sem medir?
Encostou as mãos na parede, tentando se acalmar.
Mas a curiosidade era mais forte.
Olhou para a lâmpada da sala e disse, quase rindo:
— Seria engraçado se a lâmpada piscasse agora.
No mesmo instante, a luz tremeu. Piscou uma, duas, três vezes, antes de se estabilizar. O brilho amarelo voltou ao normal, mas Léo ficou imóvel, o cigarro tremendo entre os dedos.
— Merda… — sussurrou.
Não havia mais dúvida. As palavras eram cordas puxando a marionete do real.
Ele voltou à mesa, encarou o caderno aberto. A mão tremia ao escrever:
> “As palavras não são apenas sons. São chaves. Cada chave abre uma porta invisível.”
Ficou repetindo a frase, como se precisasse cravá-la na mente. Mas, sem perceber, a exaustão da noite e o peso dos pensamentos o deixaram descuidado. Entre uma tragada e outra, deixou escapar um murmúrio carregado de frustração:
— Essa cidade é um inferno.
O som parecia pequeno, abafado pela fumaça. Mas o universo ouvira.
Um estrondo ecoou lá fora, cortando o silêncio. Primeiro um pneu gritando no asfalto, depois o barulho seco de ferro contra ferro. Sirenes de alarmes dispararam em sequência. Cães começaram a latir de forma descontrolada.
Léo correu até a janela e puxou a cortina com violência.
Na rua, três carros estavam amassados no cruzamento, fumaça saindo dos motores, pessoas gritando e correndo. O caos tomava conta do quarteirão.
Ele sentiu as pernas fraquejarem.
— Não… não foi por causa de mim… não pode ter sido…
Mas no fundo, sabia. Havia falado. O mundo obedecera.
Encostou a testa contra o vidro da janela, o corpo tremendo. A fumaça do baseado ainda pairava no ar, misturando-se ao cheiro de medo que agora impregnava sua pele.
Voltou à mesa, fechou o caderno com força, como se quisesse aprisionar as palavras dentro dele. Mas era inútil. As frases já tinham escapado, correndo pelo ar, dançando no mundo lá fora.
Deitou-se no sofá, mas o sono não vinha. Fechava os olhos e só via a cena do acidente, os gritos, as luzes piscando.
No silêncio da madrugada, sua mente repetia a mesma verdade cruel:
Seus lábios eram armas. Cada palavra, um disparo. Cada frase, uma sentença.
E antes de finalmente cair num sono inquieto, uma última pergunta ecoava como um martelo:
“Até quando vou conseguir controlar o que digo?”
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Atualizado até capítulo 36
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