Capítulo 5 – O Clamor dos Mártires

A febre cinzenta ainda consumia cidades inteiras, mas a praga já não era a única ameaça. Em meio ao caos, ergueu-se um novo inimigo: o próprio homem contra o homem.

A Aliança Global, liderada por Adrian, decretou que a praga era consequência da rebeldia espiritual. Nas transmissões oficiais, ele apontava o dedo contra os pequenos grupos de homens e mulheres que insistiam em reunir-se para orar, ler a Bíblia e pregar arrependimento.

— Eles são os culpados — dizia com voz firme. — Enquanto muitos seguem unidos, há aqueles que se escondem em cavernas, pregando contra a reconstrução. Eles atrasam o progresso, amaldiçoam o mundo com suas palavras. E vocês sabem o que deve ser feito com eles.

A multidão, exausta e faminta, aplaudia. A culpa precisava de um rosto, e os perseguidos tornaram-se esse alvo.

Miriam percebeu cedo que a fé já não podia ser vivida em público. Certo dia, ao atravessar a praça, viu soldados arrastando um homem de barba grisalha, conhecido pregador local. Ele gritava versos da Escritura enquanto era espancado:

— Arrependei-vos! O tempo está próximo! Não se dobrem ao engano!

A cada palavra, o público atirava pedras, empurrado pelo ódio. Miriam virou o rosto, lágrimas caindo. O som das últimas batidas ainda ecoava em seus ouvidos quando ouviu um disparo. O pregador tombou, e a multidão gritou de satisfação.

O corpo foi deixado exposto por dias, como aviso: quem se levantasse contra o “novo mundo” teria o mesmo destino.

Nas semanas seguintes, as perseguições intensificaram-se. Tropas vasculhavam casas, cavernas e celeiros abandonados, à procura de reuniões secretas. Famílias inteiras eram levadas, acusadas de espalhar “mentiras antigas”.

Os fiéis não eram apenas mortos — eram humilhados. Alguns eram lançados em praças para serem devorados por cães famintos, outros queimados em fogueiras improvisadas. Tudo era transmitido como espetáculo, para que ninguém ousasse imitá-los.

Ainda assim, eles não negavam sua fé. Pelo contrário, parecia que a perseguição os tornava mais firmes. Antes de cada execução, oravam em voz alta, clamando por misericórdia até para os carrascos.

Miriam participou de uma dessas reuniões secretas. O encontro acontecia no porão de uma velha fábrica abandonada. O chão era frio, iluminado apenas por velas. Havia uns vinte ali — homens, mulheres, crianças — todos com semblantes marcados pelo medo, mas também por uma estranha paz.

Um ancião, voz trêmula, leu o livro de Apocalipse em sussurros:

“Vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por causa da palavra de Deus, e clamavam com grande voz, dizendo: Até quando, ó Senhor, santo e verdadeiro, não julgas e vingas o nosso sangue?”

As palavras ecoaram no silêncio, carregadas de peso. Era como se o próprio ar vibrasse. Miriam sentiu o coração acelerar; sabia que poderia morrer a qualquer momento apenas por estar ali. Mas uma chama acendeu-se dentro dela — uma coragem que não era dela mesma.

Na superfície, a geração perdida festejava. Bares, prostíbulos e arenas de luta clandestinas estavam sempre cheios. Quanto mais a morte rondava, mais buscavam viver como se o amanhã não existisse.

O contraste era brutal: enquanto mártires eram decapitados nas ruas, outros celebravam dançando sobre sangue. Adrian aparecia em telas gigantes, incentivando a população a “purificar” a sociedade.

— Aqueles que não confiam na unidade são como câncer. E um câncer deve ser extirpado.

E assim, vizinhos denunciavam vizinhos, irmãos traíam irmãos, filhos entregavam seus pais. A confiança entre os homens havia morrido.

Numa madrugada silenciosa, soldados invadiram a casa onde Miriam estava reunida com os fiéis. O som de botas ecoou no corredor, portas arrombadas, gritos e choro. Miriam foi empurrada contra a parede, mãos amarradas às costas. Viu crianças arrastadas aos berros, velhos chutados no chão.

— Leve-os ao tribunal popular — ordenou o comandante. — Hoje haverá espetáculo.

O grupo foi conduzido pela cidade até a praça central. Uma multidão aguardava, vibrando como se fosse um festival. No centro, uma plataforma de madeira, cordas e tochas.

O pregador que conduzira a leitura bíblica estava entre eles. Miriam, tremendo, olhou-o, esperando vê-lo desesperado. Mas ele sorria. Um sorriso cansado, sim, mas cheio de convicção.

— Não tema, filha — murmurou-lhe. — Nossa vida não termina aqui.

Um a um, foram chamados ao palco. O juiz, mascarado pela autoridade de Adrian, oferecia-lhes a chance de negar a fé e “jurar lealdade ao novo mundo”. Quem aceitasse viveria. Quem negasse, morreria.

O primeiro foi um jovem de uns dezenove anos. Chorava, mas manteve-se firme.

— Não nego meu Senhor.

O golpe da lâmina foi rápido. A cabeça caiu, e a multidão explodiu em aplausos.

Miriam fechou os olhos, engolindo o choro. Sentia a fé e o medo se misturando dentro dela como fogo e água.

Quando chegou a vez do ancião, ele ergueu a voz com força surpreendente para sua idade:

— Vocês podem matar nossos corpos, mas não podem calar a Palavra de Deus. Ela já está escrita no céu.

Foi queimado vivo. O cheiro de carne invadiu a praça, mas ele não soltou um grito. Apenas cantou até o fim.

Miriam não foi chamada naquela noite. Os soldados a jogaram de volta ao calabouço, talvez para usá-la em outro espetáculo. Mas dentro dela a chama ardeu mais forte. Pela primeira vez, entendeu que os mártires não estavam sendo derrotados — estavam vencendo de outra forma.

Pois a cada morte, seus clamores subiam ao céu como trovões.

Na sala dourada de seu palácio, Adrian brindava.

— Que se matem entre si. Quanto mais sangue derramarem, mais o mundo terá medo. E quanto mais medo, mais dependentes de mim serão.

Ele não sabia, porém, que aquele sangue não se perderia. No trono celestial, almas cobertas de vestes brancas clamavam sem cessar:

— Até quando, Senhor? Até quando?

E o céu permanecia em silêncio, preparando o juízo.

Naquela noite, Miriam sonhou outra vez. Um altar imenso erguia-se diante dela. Debaixo dele, milhares de almas brilhavam como fogo. Elas clamavam em uníssono, e o som era como trovões que sacudiam a terra.

De repente, um anjo aproximou-se dela e colocou em sua mão uma veste branca.

— Espera um pouco mais, filha. Ainda há outros como você que devem morrer como eles.

Miriam acordou com lágrimas escorrendo pelo rosto, mas também com uma paz que nunca havia sentido. O tempo do clamor havia chegado. O sangue dos mártires já banhava a terra.

E a justiça de Deus estava apenas começando.

Mais populares

Comments

AUTORA💕_💕ATENA

AUTORA💕_💕ATENA

minha nossa 😭😭😭😭 chorando aqui capitulo emocionante do começo ao fim 😔 perfeito

2025-08-28

1

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!