MAXIMILIANO
(noite de Brasília: bar, música, controle absoluto)
O relógio fez barulho de metal às 19h em ponto. Fechei a última pasta, dei tchau com a cabeça para nada e ninguém, peguei a chave do carro. O elevador refletiu meu rosto e o resto: camisa preta aberta um botão a mais, mangas dobradas até o antebraço, pulseira de ouro quieta. Eu tinha aquela fome de bar que não é por comida — é por território.
W3 vazia no começo da noite, Brasília com o céu queimando em laranja atrasado. Parei na 409 Norte, bar de terraço, luz morna, som que cresce devagar. Meu lugar. Porteiro me conhece, garçom me chama pelo sobrenome. A mesa dos amigos já me esperava.
— Atrasado cinco minutos — provocou Yuri, empresário que acha que o mundo é uma planilha editável.
— Cinco a menos de conversa fiada — respondi, sentando.
Ícaro, publicitário, me puxou um copo.
— Gin ou uísque?
— Uísque. Seco. E que venha o assunto que presta.
Chegou o uísque. Primeiro gole, garganta em ordem. Fui varrendo o lugar com o olhar. Brasília tem essa mania de salão de baile geométrico: mesas alinhadas, gente bonita, sorriso ensaiado. No canto, um DJ de boné baixo girava a noite entre afrobeat, R&B e um funk comportado para agradar juiz e estagiária ao mesmo tempo. Política sonora.
A conversa começou com trabalho e degenerou para a piada interna de sempre: quem fatura mais, quem dorme menos, quem mente melhor nas próprias histórias. Eu rio por dentro. O mundo é um tribunal; cada mesa, uma audiência informal.
— Ouvi que teu padrinho mandou brinquedo novo pro escritório — soltou Ícaro, cortando o gelo com malícia.
— Mandou recomendação — corrigi, sem humor. — E recomendação não senta na minha cadeira. Amanhã eu vejo se serve.
Yuri assobiou baixo, do jeito dele de dizer “coragem de quem não deve nada a ninguém”.
A pista chamava. Eu não sou de dançar muito. Eu movo o suficiente pra deixar claro que o ambiente é meu. Levantei. O garçom fez o gesto, abriu espaço; as pessoas abrem caminho quando você aprendeu a andar sem pedir licença. Desci dois degraus. O grave me acertou o peito, a luz varreu o rosto de todo mundo para mim.
Ela me achou primeiro: Tainá, vestido verde, alça fina, sorriso de quem sabe que o efeito está funcionando. Aproximou com a coreografia certa.
— Você tem cara de quem nunca espera por ninguém — ela disse, dançando comigo sem encostar de verdade.
— Eu não espero. Eu marco hora — respondi, guiando pouco, só o bastante.
Dois minutos e o ritmo se acertou. Tainá dançava como quem negocia: oferece, recua, volta. Eu entrei no jogo porque gosto. Mão no contorno da cintura sem posse, olho no olho. Quando a música pediu, beijei — curto, preciso, com gosto de menta e vantagem. O bar inteiro existe, mas o resto vira ruído quando você sabe reduzir o quadro ao centro.
— Você sempre decide a hora de tudo? — ela me provocou, ainda perto.
— Só quando o relógio é meu — sorri de canto. Ela riu. Seguimos mais uma música e eu me afastei com elegância calculada. Quem domina, não fica pendurado.
Voltei pra mesa. Yuri levantou a taça, Ícaro fez cara de “de novo isso?”. Eles adoram me achar previsível. Eu deixo.
Troca de som, entra set de disco com batida moderna. O vento do terraço bateu. Uma risada chamou a atenção: Bia, ruiva de franja, blusa preta ombro a ombro, copo de gin na mão. Chegou sem freio.
— Você é o Andrade.
— Depende do que você precisa.
— De alguém que não fala muito e faz o necessário.
Ela foi pro ponto: dançar, colar, testar. Beijei de novo. Bia tinha outro gosto — gin e atrevimento. A mão dela subiu pelo meu peito com pressa de manual. Segurei o pulso num gesto leve.
— Calma. Tudo aqui tem ordem — falei, mostrando que comando não é grito; é ritmo.
Ela entendeu, sorriu, mordeu o próprio lábio como quem marca campo e foi buscar amiga. Eu fiquei. A pista, o som, o copo — geometria do meu conforto.
Renata mandou mensagem: “Amanhã 8h30 reunião SunWay; 10h padrinho; 11h retorno TechNorte. Lembrei do agravo.”
Respondi: “Confirmado. Deixa água e café na sala às 8h20.”
Telefone no bolso de novo. Voltei ao presente.
Chegou Camila, olhos puxados, riso fácil, vestido prata que capturava luz. Ela não pediu licença.
— Você dança comigo ou eu danço com você? — perguntou, mão já no meu ombro.
— Os dois ao mesmo tempo.
Camila não discutia; entregava. Dois passos, três voltas, a pista virou palco. Meu corpo sabe o que faz quando a cabeça já decidiu que vai ser simples. Fiquei com ela o tempo suficiente pra ela lembrar meu nome amanhã e esquecer meu número depois. Troca justa.
Voltando à mesa, mais uísque. Henrique, promotor de eventos, apareceu do nada, abraçou, falou alto. Gente demais gosta de se ver refletida no meu copo.
— Fecha camarote no sábado? — ele perguntou.
— Se eu tiver tempo.
— Tempo você sempre tem, você só escolhe onde gasta.
— Exatamente.
O garçom trouxe isca de peixe, batata rústica, limão. Comi pouco. Eu não como muito em bar; deixa lento. Bebi o necessário pra o corpo destravar e a mente não baixar a guarda.
Mais gente veio, mais convites, mais “senta aqui”, mais “tira foto” (eu não tiro). A noite avançou como audiência longa: você entende o ritmo, antecipa a tese, corta quando precisa. “Ficar com algumas garotas” não é meta; é consequência de presença. Tainá voltou para mais uma dança e despedida, Bia reapareceu com um “você some rápido” que eu não desmenti, Camila pediu meu contato, eu dei o telefone do escritório. Sempre o do escritório. Minha vida pessoal não é recepção.
Perto das duas, a música perdeu frescor. Quando o set cai, eu saio. A mesa percebeu. Yuri ficou, Ícaro pediu mais um, Henrique foi tentar outra mesa. Paguei a conta com um gesto curto; o garçom entendeu. Gorjeta generosa. Quem mantém o palco em ordem merece.
Lá fora, o vento de Brasília fez o serviço de apagar calor. Entrei no carro. Tela acendeu com notificações: duas mensagens desconhecidas, um convite pra after, Renata lembrando de um e-mail respondido. Ignorei as primeiras, respondi a última com um “bom trabalho”, guardei o resto na gaveta mental do “tanto faz”.
Cheguei em casa. Silêncio caro. Terno no cabide, relógio na bandeja, corrente no apoio. Sala grande com vista para um céu que não acaba. Abri a janela. Brasília dormia com um olho aberto. Lavei o rosto, deixei o uísque solitário no aparador sem tocar. O corpo ainda tinha música na memória; o cérebro, não.
Deitei. A cama recebeu como sempre: sem perguntas. Fiquei olhando o teto, pensando no bar, nos amigos, nos beijos, no controle. Eu tinha vencido a noite no meu próprio método: entrei, ocupei, saí inteiro. É assim que eu faço com tudo.
O sono veio. Antes de apagar, um pensamento seco, sem drama: amanhã eu tenho trabalho. E quando eu tenho trabalho, o mundo ajusta o passo.
Apaguei. A cidade continuou de guarda para mim. Eu gosto quando é assim.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 37
Comments
Andreza Lelis
Vamos ver até quando Maximiliano vai continuar assim!!!
2025-09-07
0
iracilda damasceno
Ele se acha o último biscoito do pacote
2025-08-26
0
Simone Freitas
Ele é todo garanhão e as gatas piram
2025-08-25
0