capitulo 4

JAMILE

(chegada em Brasília: chave nova, céu imenso, apê pequenino)

Cinco da manhã. Brasília me recebeu com um vento seco e um céu que parecia ter sido passado a ferro. Desci do ônibus meio zonza de sono e expectativa, mochila num ombro, mala no outro, e uma vontade boba de fotografar até o chão. Eu tava ridícula de feliz. Sorriso de quem ganhou casa na caixa de fósforo: pequeno, perfeito, meu.

Pedi um carro de aplicativo. O motorista tinha voz de rádio e cara de quem já viu metade do país pela janela. Fiquei quieta, olhando a cidade abrir os olhos. Eixos, tesourinhas, prédios de pilotis fazendo pose. Eu repetia na cabeça: “É aqui, Jamile. Agora é aqui.”

Portaria simples, construção antiga, azulejo bege que já viu muita mudança acontecer. O porteiro me deu bom dia com café na mão e preguiça na voz.

— Apartamento 305?

— Isso.

— Aqui a chave. Cuidado que o elevador às vezes inventa de parar no segundo andar.

Sorri, peguei a chave com um chaveiro ridículo que comprei na rodoviária — formato de casinha, claro — e subi. O elevador gemeu como velho de joelho ruim. Tudo bem. Eu também tava velha de cansaço e nova de esperança.

Porta aberta. Primeiro passo dentro. Cheiro de tinta velha misturado com poeira comportada. A luz da manhã entrou pela janela da sala e fez o milagre: transformou “apertado” em “aconchegante”. O apê era pequeno, sim, do tamanho da minha paciência com gente grossa: limitado, porém suficiente.

A sala tinha dois quadrados de espaço e uma janela generosa. Cozinha americana, bancadinha de mármore gasto, um fogão de duas bocas que parecia um passarinho magro e uma geladeira honesta, do tipo que liga e desliga com barulho de suspiro. No quarto, uma parede branca pedindo quadro, uma tomada pedindo filtro de linha e um guarda-roupa de duas portas que fazia “toc” satisfatório quando fechava. O banheiro tinha box de acrílico e um chuveiro elétrico com cara de quem decide sozinho se será verão ou geleira. Testei. Banho morno. Fiz as pazes com Deus.

Fiquei um tempo só andando de um lado pro outro, de mãos na cintura, avaliando. A gente sempre faz isso quando entra num lugar novo: mede com o olhar pra ver se a alma cabe. A minha coube.

Abri as janelas. O barulho da rua entrou: um ônibus engolindo esquina, um cachorro que acha que manda no quarteirão, alguém ouvindo rádio baixinho. O sol correu pela parede como se estivesse inaugurando o dia só pra mim. Tirei o bilhetinho da Vó da bolsa e colei com durex na geladeira: “Quando bater a saudade, mastiga devagar.” Abri o potinho dos biscoitos e comi um, de pé, rindo sozinha. Boba. Feliz.

Hora do meu ritual. Pano no chão com cheiro de pinho, vassoura pela casa, pano úmido nas superfícies. Coloquei uma playlist de chuva no celular, porque o ventilador ainda não tinha chegado e meu cérebro só funciona direito com barulho inventado. Lavei a pia da cozinha, alinhei os talheres que eu trouxe num potinho, passei uma água no escorredor que rangeu como gato magoado. Abri as caixas: uma com roupas, outra com livros, outra com lembranças de gente que virou saudade.

Montei meu altarzinho discreto na prateleira do quarto: foto dos meus pais, terço do Vô, um coqueirinho de plástico que ganhei da vizinha lá da rua antiga, e a caneta azul que usei no dia da aprovação. Coloquei do lado um copo com tampa virando vaso improvisado, e prometi comprar uma suculenta assim que sobrasse.

Fiz café coado no pano — presente da Vó, claro — e deixei a cozinha cheirando afeto. Bebi devagar, encostada no parapeito da janela, olhando o prédio da frente que tinha roupa no varal e um lençol com estampa de abacaxi balançando. Brasília ali parecia condomínio de interior. Ameacei chorar, mas não. Não agora. Preferi dançar sozinha uma música e rir do meu ridículo feliz.

Fui pro quarto. Tirei da mala meu lençol favorito, estiquei na cama, ajeitei o travesseiro. Pendurei na porta do guarda-roupa a saia creme e a blusa preta que eu ia usar amanhã. Scarpin embaixo, certinho, pronto pro combate. Coloquei meus livros na prateleira: Constituição, Processo Civil, um romance da Conceição Evaristo que me acalma a cabeça, um caderno com post-its coloridos e metas rabiscadas.

Sentei no chão com o caderno aberto e fiz a Lista Brasília:

Comprar cabides (muitos).

Filtro de água ou galão? Decidir.

Pano de prato (pelo menos três).

Tapetinho pro banheiro.

Extensão e benjamim (porque as tomadas conspiram).

Sabonete cheiroso de vitória.

Vaso de suculenta, pra eu fingir que sei cuidar.

Mandei mensagem pros meus avós: “Cheguei. Já amo meu cubículo.” Dois segundos e chegou áudio da Vó, do jeitinho dela: “Graças a Deus, minha filha. Toma água, abre as janela, põe o pé no chão e agradece.” Coloquei o pé no chão, agradeci. Vô mandou só um “👍🏼” e um “Orgulho”.

Saí pra comprar o básico. Padaria na esquina com balcão de inox e pão quentinho soprando fumaça. Comprei meia dúzia, uma manteiga, um queijo minas que parecia promessa cumprida. No mercadinho ao lado, peguei sabão em pó, detergente, um kit de esponja, pregador de roupa, um tapetinho de banheiro azul (não era minha cor, mas era o que tinha). A moça do caixa perguntou se eu tinha mudado ontem. Respondi: “Mudei hoje e já sou do bloco.” A gente se entendeu com um sorriso.

Voltei com as sacolas batendo no joelho, subindo a escada porque o elevador estava de birra. Passei manteiga no pão, fiz mais café, comi em pé de novo porque ainda não tinha cadeira — e porque comer em pé tem gosto de começo de vida. A cozinha ganhou cara de casa com uma toalha de mesa feia que comprei por cinco reais. Feia, porém guerreira.

Deitei no chão da sala, braços abertos, sentindo o vento inventando trilha pelo meu braço. O teto me olhou de volta. Eu tava tão feliz que doía perto do coração. A cidade inteira parecia cheia de alavancas: trabalho, estudo, gente nova, caminhos. Minha cabeça correu à frente do corpo, como sempre faz, e eu puxei de volta: devagar, Jamile. Um dia por vez. Hoje é casa. Amanhã é mundo.

Fui pro banho de teste oficial. O chuveiro se comportou como adulto. Saí enrolada na toalha, pele cheirando a sabonete barato que ganha qualquer perfume caro. Vesti um short velho, prendi o cabelo num rabo de cavalo alto, passei um creme qualquer. Ficou tudo com a minha cara. Pequeno, limpo, funcional, com vontade.

Quando o sol ficou deitado atrás dos prédios, sentei no parapeito da janela de novo. Brasília dourou. Os ipês lá embaixo — amarelos, lindos — inventaram de me dar boas-vindas sem nem saber. Tirei uma foto, mandei pros meus avós. Vó mandou um coração. Vô perguntou se o chuveiro era quente. Respondi com outra foto: vapor no espelho e um joinha. Ele riu em áudio.

De noite, deitei no colchão e escutei a cidade respirar. Um vizinho riu alto, alguém bateu porta, o ônibus passou, e o meu coração desacelerou como quem encontra cama antiga. Fiquei encarando o teto até o sono pesar. O último pensamento foi simples, sem poesia: “Eu consigo.”

Brasília me ganhou no primeiro café e no segundo pôr do sol. O apê me coube — e eu coube nele. Amanhã começo a vida nova. Hoje eu celebro a casa pequena, a coragem grande e a alegria besta de ter uma chave que abre o mundo.

Mais populares

Comments

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Jamile é feliz com o que tem!!!
Lindo ela conversando com os avós 😊

2025-09-07

0

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Jamile é feliz com o que tem!!!
Lindo ela conversando com os avós 😊

2025-09-07

0

Arlete Oliveira

Arlete Oliveira

vai ficar lindo. Melhor de tudo é o chuveiro quente

2025-08-31

0

Ver todos
Capítulos
1 Capitulo 1 Jamile
2 capítulo 2 Max
3 capítulo 3
4 capitulo 4
5 capitulo 5 Maximiliano
6 capitulo 6
7 capitulo 7 Jamile
8 capitulo 8
9 capitulo 9
10 capitulo 10
11 capitulo 11 Jamile
12 capitulo 12 continuação
13 capitulo 13 Max
14 capitulo 14
15 capitulo 15 jamile
16 capitulo 16
17 capitulo 17 Max
18 capitulo 18
19 capitulo 19 Jamile
20 capitulo 20
21 capitulo 21 continuação
22 capitulo 22
23 capítulo 23
24 capítulo 24
25 capítulo 25 Jamile
26 capitulo 26
27 capitulo 27
28 capitulo 28
29 capítulo 29
30 capítulo 30
31 capítulo 31
32 capítulo 32
33 capítulo 33
34 capítulo 34
35 capítulo 35
36 capítulo 36
37 capítulo 37
38 capitulo 38
39 capitulo 39
40 capítulo 40
41 capítulo 41
42 capitulo 42
43 capitulo 43
44 capítulo 44
45 capítulo 45
46 capítulo 46
47 capítulo 47
48 capítulo 48
49 capítulo 49
50 Capítulo 50
51 capítulo 51
52 capítulo 52
53 capítulo 53
54 capítulo 54
55 capítulo 55
56 capítulo 56
57 capítulo 57
58 capítulo 58
59 capítulo 59
60 capítulo 60
61 capítulo 61
62 capítulo 62
63 capítulo 63
64 capítulo 64
65 capítulo 65
66 capítulo 66
67 capítulo 67
68 capítulo 68
69 capítulo 69
70 capítulo 70
71 capítulo 71
72 capitulo 72
73 capitulo 73
74 capitulo 74
75 capitulo 75
76 capitulo 76
77 capitulo 77
78 capitulo 78
79 capitulo 79
80 capitulo 80
81 capitulo 81
82 capitulo 82
Capítulos

Atualizado até capítulo 82

1
Capitulo 1 Jamile
2
capítulo 2 Max
3
capítulo 3
4
capitulo 4
5
capitulo 5 Maximiliano
6
capitulo 6
7
capitulo 7 Jamile
8
capitulo 8
9
capitulo 9
10
capitulo 10
11
capitulo 11 Jamile
12
capitulo 12 continuação
13
capitulo 13 Max
14
capitulo 14
15
capitulo 15 jamile
16
capitulo 16
17
capitulo 17 Max
18
capitulo 18
19
capitulo 19 Jamile
20
capitulo 20
21
capitulo 21 continuação
22
capitulo 22
23
capítulo 23
24
capítulo 24
25
capítulo 25 Jamile
26
capitulo 26
27
capitulo 27
28
capitulo 28
29
capítulo 29
30
capítulo 30
31
capítulo 31
32
capítulo 32
33
capítulo 33
34
capítulo 34
35
capítulo 35
36
capítulo 36
37
capítulo 37
38
capitulo 38
39
capitulo 39
40
capítulo 40
41
capítulo 41
42
capitulo 42
43
capitulo 43
44
capítulo 44
45
capítulo 45
46
capítulo 46
47
capítulo 47
48
capítulo 48
49
capítulo 49
50
Capítulo 50
51
capítulo 51
52
capítulo 52
53
capítulo 53
54
capítulo 54
55
capítulo 55
56
capítulo 56
57
capítulo 57
58
capítulo 58
59
capítulo 59
60
capítulo 60
61
capítulo 61
62
capítulo 62
63
capítulo 63
64
capítulo 64
65
capítulo 65
66
capítulo 66
67
capítulo 67
68
capítulo 68
69
capítulo 69
70
capítulo 70
71
capítulo 71
72
capitulo 72
73
capitulo 73
74
capitulo 74
75
capitulo 75
76
capitulo 76
77
capitulo 77
78
capitulo 78
79
capitulo 79
80
capitulo 80
81
capitulo 81
82
capitulo 82

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!