capítulo 3

MAXIMILIANO (continuação)

Renata tinha acabado de sair quando bateram de novo.

— Entra — falei sem levantar os olhos.

A porta abriu e apareceu Beatriz, uma das estagiárias do contencioso cível. Vinte e poucos anos, óculos redondos, postura de quem pede licença até pra respirar. Segurava uma pasta transparente com capa azul. Capa azul no meu escritório sempre significa a mesma coisa: rascunho pedindo misericórdia.

— Doutor, trouxe a inicial do caso da TechNorte — ela disse, depositando o arquivo na mesa como quem deixa um gato arisco no sofá.

Puxei a pasta. Dei uma passada de olho. Trinta segundos bastaram.

— Beatriz… — falei calmo, quase gentil. — Tu escreveu “Excelentíssimo Juiz de Direito da 5ª Vara”. Nosso caso é na 3ª Vara Empresarial. Começamos mal.

Ela engoliu em seco.

Virei a primeira página. O cabeçalho estava com margem errada, fonte trocada, espaçamento indeciso. Parecia texto feito às pressas num domingo de ressaca.

— Qualificação do autor… incompleta. Cadê o CNPJ? Cadê o e-mail indicado no art. 319 do CPC? — minha voz não subiu um milímetro. Não precisou.

Virei a segunda.

— Fatos em ordem cronológica? Não. Você começa pelo e-mail de cobrança de março e só depois conta o contrato de 2022. Parece novela com flashback ruim. O juiz não é plateia: ele quer linha reta.

Virei a terceira.

— Fundamentação jurídica… — fiz uma pausa curta, do tamanho de um veredito. — O caso é responsabilidade do fornecedor de software. Você citou Código Civil quando o CDC resolve metade da briga. Cadê art. 14, art. 6º, VIII? Cadê a tutela de urgência do art. 300? — levantei o olhar. — E essa jurisprudência aqui é de 2014. Jurisprudência velha é que nem prazo perdido: não serve.

Ela ficou branca.

— Doutor, eu…

— Anexos — continuei, ignorando. — Cadê a procuração? Cadê o contrato social? Cadê a printagem do erro do sistema que derrubou a plataforma do cliente? Você descreve, mas não prova. Processo não é crônica, Beatriz.

Virei pro fim.

— Pedidos frouxos. “Requer o que for de direito” não existe aqui. Quero pedido numerado: 1) inversão do ônus da prova; 2) obrigação de fazer em 48 horas sob multa diária; 3) danos materiais com base nos relatórios X e Y; 4) danos morais se couber, e se pedir, tem que fundamentar; 5) valor da causa — que você esqueceu. — Fechei a pasta. — E o fecho? “Nestes termos, pede deferimento” e… nada. Nem local, nem data, nem OAB. É o tipo de deslize que humilha a gente em cartório.

Silêncio. O relógio de ouro pesou no pulso. A cidade, atrás do vidro, se fingia de muda.

— Doutor, eu posso ajustar. É que eu assumi ontem e a doutora Letícia…

— A doutora Letícia não assina no meu lugar — cortei. — Você trabalha pra mim. E aqui tem regra.

Me levantei, fui até o quadro de vidro na parede e, com a caneta, escrevi devagar, letra firme, sem olhar pra ela:

CHECKLIST ANDRADE — INICIAIS CIVIS

Foro e Vara corretos + distribuição.

Qualificação completa (CNPJ/CPF, e-mail, endereço).

Procuração e documentos essenciais anexados e numerados.

Fatos: cronologia limpa.

Causa de pedir próxima e remota.

Fundamentação: artigos certos (CDC/CPC) + doutrina recente.

Jurisprudência dos últimos 3 anos, ementa clara.

Pedidos numerados + valor da causa.

Tutela de urgência quando houver risco e probabilidade.

Fecho, local, data, OAB.

Formatação padrão do escritório.

Revisão final: gramática, citações, anexos.

Virei de volta.

— Isso — apontei pro quadro — é o mínimo. Não é diferencial, não é “nossa, que brilhante”. É porta de entrada. Se não fizer, nem bate.

Beatriz assentiu com olhos de quem levou tapa d’água fria.

— Você vai pegar essa peça, reescrever do zero, anexar tudo que falta, atualizar as teses, trazer duas jurisprudências do STJ e uma do TJDFT que sirvam exatamente pra esse caso. Vai numerar pedido, somar prejuízo com base no relatório de queda e dar valor da causa coerente. Tem quarenta minutos.

Ela arregalou os olhos.

— Quarenta, doutor?

— Trinta seria ofensa — respondi, seco. — Quarenta é generosidade. E me poupe de lágrima. Quem chora aqui é protocolo quando leva carimbo errado.

Beatriz fez que sim, com a cabeça rápida, e saiu tropeçando no próprio pé. A porta fechou, e eu fiquei com a pasta na mão, o cheiro do papel ruim no ar. Passei álcool gel, hábito automático, e sentei.

Renata apareceu dois minutos depois, silenciosa, com duas pilhas de processo e um café.

— Acho que a Beatriz vai desmaiar no corredor — ela comentou, deixando o expresso na mesa.

— Se desmaiar, alguém busca água. Depois manda ela voltar e terminar a peça — respondi, sem humor.

— Quer que eu peça os prints pro cliente da TechNorte?

— Já deveria estar pedindo — falei, olhando pro computador. — E Renata… manda recado pro time inteiro: padrão mínimo não é elogio. É obrigação.

Ela saiu. Abri o e-mail. Tinha cobrança de cliente, convite pra palestra, uma ameaça de ação da concorrência. O comum da minha manhã. O telefone tocou; eu atendi no terceiro toque.

— Andrade.

Do outro lado, um empresário que acha que gritar aumenta a razão. Deixei falar. Ele despejou ansiedade, números, pressão. Quando respirou, eu entrei.

— Pare de gritar e anote — falei, no tom que uso pra ajeitar vértebra de gente grande. — Vamos fazer acordo agora pra não sangrar em juízo depois. Me mande o contrato em PDF e Word, as mensagens, e prepare proposta fechada com multa escalonada. Sem isso, não tem reunião.

Desliguei. Mensagens assim eu faço de olhos fechados. Não é talento, é músculo.

Dei uma olhada no relógio. Dezenove minutos. Bati o dedo na mesa, impaciente. A porta se abriu com cautela.

Beatriz voltou. Rosto tenso, documento impresso, desta vez com clipe, não a capa azul — já entendeu que comigo é papel discreto.

— Coloca aqui — apontei.

Li em silêncio. Agora sim: 3ª Vara Empresarial, qualificação completa, fatos de janeiro a março, linha do tempo respirando. Fundamentação com CDC e CPC, tutela de urgência com probabilidade do direito e perigo de dano. Jurisprudência do STJ de 2023, TJDFT de 2024. Pedidos numerados, valor da causa calculado com base nos relatórios. Fecho com local, data, OAB. Formatação padrão.

Levantei o olhar.

— Melhor. Ainda tem vícios — deslizei o dedo. — Falta sumário porque ficou com mais de 20 páginas. E essa frase aqui está com verbo no futuro; petição não promete, afirma. Troca pro presente. Arruma e protocola ainda hoje. E manda pro meu e-mail em PDF e em Word. Se vier só em PDF, volta. Se vier só em Word, volta. Se vier com fonte trocada, volta duas vezes.

Beatriz respirou pela primeira vez desde que entrou.

— Sim, doutor. Obrigada pela… orientação.

— Isso não foi orientação, foi mandamento — respondi, seco, mas com meio canto de boca que quase virou sorriso. — Agora vai trabalhar.

Ela saiu. Renata reapareceu, como se tivesse sensor.

— Quer que eu providencie uma cartilha com esse checklist pra todo mundo?

— Não. Quero que decorem. Cartilha vira peso de papel.

Peguei o casaco, dei dois passos até a janela. Brasília brilhava com aquele céu impossível. Por alguns segundos, me vi lá embaixo, andandinho, só pra lembrar a sensação de não ser ninguém. É saudável.

Quinze minutos depois, meu telefone vibrou. Beatriz mandou a peça revisada e o print do protocolo. Conferi. Ok.

Respondi com um “Recebido. Não esqueça o prazo do agravo se a tutela cair.”

Ela mandou um “Sim, doutor 🙏”.

Bloqueei a visualização de emoji. No meu escritório, oração não substitui prazo.

Renata entrou de novo.

— Agenda da tarde: reunião com a SunWay às 14h, call com o Sérgio às 16h, e o padrinho ligou confirmando que a nova estagiária chega amanhã cedo.

— Anota aí — falei, sem virar. — A partir de agora, toda peça passa pelo checklist. Toda. Quem errar, treina. Quem repetir erro, dança.

— E a nova?

— Mesma regra. Nome não segura cadeira aqui.

Renata assentiu. Saí da janela e voltei pra mesa. As coisas estavam nos eixos. Gosto assim: ordem, ritmo, resultado. Meu escritório não é sala de aula. É trincheira. Quem entra aprende rápido — ou aprende saindo.

Peguei a caneta, assinei três despachos, fechei a pasta da TechNorte. O relógio marcou meio-dia. Pedi almoço, sem conversa. Enquanto esperava, abri a agenda de amanhã. Linha a linha, tudo no lugar.

Arrogante? Eu chamo de padrão. Quem confunde firmeza com grosseria nunca carregou um prazo nas costas.

Amanhã tem gente nova. O mundo gira, eu não. Quem quiser ficar, aprende a girar na minha órbita.

Mais populares

Comments

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Ele é muito rígido, foi criado assim e continua! Mas também essa profissão exige isso, um erro pode custar perda de contratos ou clientes condenados!!!

2025-09-07

0

Andreza Lelis

Andreza Lelis

Ele é muito rígido, foi criado assim e continua! Mas também essa profissão exige isso, um erro pode custar perda de contratos ou clientes condenados!!!

2025-09-07

0

Dilvana Camargo

Dilvana Camargo

precisa de alguém que lhe ensinei uma lição

2025-09-10

0

Ver todos
Capítulos
1 Capitulo 1 Jamile
2 capítulo 2 Max
3 capítulo 3
4 capitulo 4
5 capitulo 5 Maximiliano
6 capitulo 6
7 capitulo 7 Jamile
8 capitulo 8
9 capitulo 9
10 capitulo 10
11 capitulo 11 Jamile
12 capitulo 12 continuação
13 capitulo 13 Max
14 capitulo 14
15 capitulo 15 jamile
16 capitulo 16
17 capitulo 17 Max
18 capitulo 18
19 capitulo 19 Jamile
20 capitulo 20
21 capitulo 21 continuação
22 capitulo 22
23 capítulo 23
24 capítulo 24
25 capítulo 25 Jamile
26 capitulo 26
27 capitulo 27
28 capitulo 28
29 capítulo 29
30 capítulo 30
31 capítulo 31
32 capítulo 32
33 capítulo 33
34 capítulo 34
35 capítulo 35
36 capítulo 36
37 capítulo 37
38 capitulo 38
39 capitulo 39
40 capítulo 40
41 capítulo 41
42 capitulo 42
43 capitulo 43
44 capítulo 44
45 capítulo 45
46 capítulo 46
47 capítulo 47
48 capítulo 48
49 capítulo 49
50 Capítulo 50
51 capítulo 51
52 capítulo 52
53 capítulo 53
54 capítulo 54
55 capítulo 55
56 capítulo 56
57 capítulo 57
58 capítulo 58
59 capítulo 59
60 capítulo 60
61 capítulo 61
62 capítulo 62
63 capítulo 63
64 capítulo 64
65 capítulo 65
66 capítulo 66
67 capítulo 67
68 capítulo 68
69 capítulo 69
70 capítulo 70
71 capítulo 71
72 capitulo 72
73 capitulo 73
74 capitulo 74
75 capitulo 75
76 capitulo 76
77 capitulo 77
78 capitulo 78
79 capitulo 79
80 capitulo 80
81 capitulo 81
82 capitulo 82
Capítulos

Atualizado até capítulo 82

1
Capitulo 1 Jamile
2
capítulo 2 Max
3
capítulo 3
4
capitulo 4
5
capitulo 5 Maximiliano
6
capitulo 6
7
capitulo 7 Jamile
8
capitulo 8
9
capitulo 9
10
capitulo 10
11
capitulo 11 Jamile
12
capitulo 12 continuação
13
capitulo 13 Max
14
capitulo 14
15
capitulo 15 jamile
16
capitulo 16
17
capitulo 17 Max
18
capitulo 18
19
capitulo 19 Jamile
20
capitulo 20
21
capitulo 21 continuação
22
capitulo 22
23
capítulo 23
24
capítulo 24
25
capítulo 25 Jamile
26
capitulo 26
27
capitulo 27
28
capitulo 28
29
capítulo 29
30
capítulo 30
31
capítulo 31
32
capítulo 32
33
capítulo 33
34
capítulo 34
35
capítulo 35
36
capítulo 36
37
capítulo 37
38
capitulo 38
39
capitulo 39
40
capítulo 40
41
capítulo 41
42
capitulo 42
43
capitulo 43
44
capítulo 44
45
capítulo 45
46
capítulo 46
47
capítulo 47
48
capítulo 48
49
capítulo 49
50
Capítulo 50
51
capítulo 51
52
capítulo 52
53
capítulo 53
54
capítulo 54
55
capítulo 55
56
capítulo 56
57
capítulo 57
58
capítulo 58
59
capítulo 59
60
capítulo 60
61
capítulo 61
62
capítulo 62
63
capítulo 63
64
capítulo 64
65
capítulo 65
66
capítulo 66
67
capítulo 67
68
capítulo 68
69
capítulo 69
70
capítulo 70
71
capítulo 71
72
capitulo 72
73
capitulo 73
74
capitulo 74
75
capitulo 75
76
capitulo 76
77
capitulo 77
78
capitulo 78
79
capitulo 79
80
capitulo 80
81
capitulo 81
82
capitulo 82

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!