A PRIMEIRA FENDA

Narrado por Nikolai Orlov

O relógio de parede marcava seis horas quando o silêncio do meu escritório foi quebrado por três toques secos na porta. Não precisei dizer “entre”. Meus homens já sabem: o convite é desnecessário quando a ordem é permanente.

Konstantin atravessou o batente com a mesma discrição de sempre. Terno escuro, barba por fazer, olhos que não piscam mais do que o necessário. É meu cão de caça — encontra tudo, fareja tudo, não deixa rastros. Depositou um envelope espesso sobre a mesa, ao lado do meu cinzeiro vazio e do copo com duas pedras de gelo.

— Está completo — disse.

— Sem lacunas? — perguntei.

— Nenhuma, Pakhan. Até onde um ser humano pode ser mapeado… ela foi.

Fitei o envelope por um segundo inteiro antes de tocá-lo. Não pelo conteúdo; pelo que o gesto implicava. Desde ontem, quando a vi no corredor — aquele cabelo, aquela pele, aquela postura sem pose — eu já sabia que abriria essa pasta. Na minha casa, ninguém entra sem que eu saiba de onde veio, quem ama, o que teme, e quanto custa sua vida.

Rompi o lacre.

Nayla dos Santos Silva.

Vinte e três anos. Brasileira. Campina Grande, Paraíba.

Mãe: lavadeira. Pai: ausente desde que ela tinha dez anos.

Dois irmãos menores.

Três trabalhos formais até os dezoito. Depois, bicos. Nenhum histórico policial.

Nenhum namorado.

A palavra veio duas páginas depois, isolada, quase um disparate num relatório frio: virgem.

Meu dedo parou ali. Não é a ênfase que me costuma prender. O que me prendeu foi a explicação à margem, a caligrafia pragmática de Konstantin: “Por escolha. Fala disso como promessa. Pretende se entregar apenas ao homem que se tornar seu marido.”

Promessas. Pureza. Eu não as coleciono. O mundo me ensinou que promessas são moedas baratas e pureza é, no máximo, um véu que cedo ou tarde cai. Mas a forma como ela carregava aquilo — não como um enfeite, e sim como uma decisão — atingiu um lugar meu que eu costumo manter enterrado sob concreto e gelo.

Fechei a pasta e deixei o peso do papel tocar o tampo da mesa. Minha mão estava firme. Meu pulso… não.

— Ela foi contratada pela minha mãe — falei, mais para deixar a lógica no lugar do que por necessidade.

— Sim, senhor. D. Elena a entrevistou pessoalmente. A governanta aprovou o período de teste.

— E você sabe por que eu quis esse relatório.

Konstantin não respondeu; não precisava.

— Continue observando — acrescentei. — Discretamente. Nenhum funcionário fala com ela além do necessário. Nenhum homem se aproxima sem minha autorização.

Ele assentiu. Ao se virar para sair, hesitou um instante.

— Com licença, Pakhan… a noiva do senhor ligou. Disse que virá esta noite.

Puxei ar devagar, como quem conta a própria paciência.

— Avise à portaria que não a faça esperar.

---

Depois que Konstantin foi embora, Sergei apareceu. Ele entra sem bater porque é meu sangue — e mesmo assim, sabe o quanto esse privilégio pesa.

— Boas notícias? — perguntou, inclinando a cabeça para o envelope.

— Precisões — respondi. — E precisões são melhores que notícias.

— Sobre a brasileira?

— Nayla. — Dei nome ao que minha mente já tinha nomeado.

— Minha tia disse que ela é… diferente — comentou, com um meio sorriso. — Fiquei curioso para descobrir o que significa “diferente” no dicionário da D. Elena.

— É honesta. E trabalha como se a casa de outra pessoa fosse a dela. — Minha voz soou mais áspera do que eu pretendia. — E não inspire a equipe a especular, Sergei. O que a staff pensa é problema meu, não deles.

— Eu não disse nada. — Ele levantou as mãos, teatral. — Só acho… interessante. A última vez que o vi pedir um relatório tão depressa foi quando contratamos o sommelier.

— O sommelier me devia dinheiro. — Peguei o copo, fiz o gelo estalar. — Ela não me deve nada. E é por isso que me intriga.

Sergei sorriu de lado. Ele sabe que intrigas, para mim, são alvos.

— Vamos ter visita hoje — avisei.

— Ekaterina?

— Hm.

— Quer que eu esteja por perto?

— Não. — Olhei o fogo, na lareira. — Hoje, quero ver até onde o barulho preenche o silêncio.

Ele entendeu. Sergei sempre entende. Saiu sem comentário. Ainda bem. Gosto do primo por muitas razões; uma delas é que ele sabe quando deixar meu silêncio em paz.

---

Às vezes me perguntam quando me tornei o que sou. Sorriam complicado se eu respondê-los “aos treze”, “aos dezenove” ou “na noite em que meu pai morreu”. A verdade é que ninguém se torna Pakhan num dia. Você nasce com o ferro quente no sangue e passa a vida deixando queimar os lugares certos.

Mas sim, houve uma noite que mudou tudo. Uma emboscada que tirou a vida de Sergey Orlov, meu pai. Os homens me trouxeram até o galpão ainda com cheiro de gasolina e pólvora. O corpo dele estava num plástico negro, e ninguém ousava tocar. Minha mãe não chorou — não na minha frente. Ela apenas me olhou como quem coloca um manto nas costas do filho.

Lembro-me de caminhar até o centro do círculo de homens, olhando um por um nos olhos. Eu não disse “por favor” nem “me ajudem”. Eu disse:

— A partir de agora, todos os acertos passam por mim. Quem tiver dúvidas, que saia da sala e não volte.

Ninguém saiu.

Foi assim que o luto virou território. E o território virou lei.

Isso volta à minha cabeça em noites como esta, quando um envelope sobre a mesa pesa mais que um corpo.

---

Ekaterina chegou antes do previsto. Sempre chega — a pontualidade dela é calculada, quase uma provocação.

— Senti sua falta, Nikola — disse, entrando no meu quarto como quem entra num palco.

— Não me chama assim — respondi, automático.

Ela riu e deixou o casaco escorregar pelos ombros. O perfume caro tomou o ar. O vestido, justo; a boca, pintada demais; os olhos, frios. Ekaterina é bonita como lâmina polida. E como toda lâmina, não se sente amada: se sente usada.

— Ouvi dizer que sua mãe contratou uma… brasileira. — Ela atravessou a suíte, arrastando a ponta dos dedos no encosto da poltrona. — Jovem. Diferente.

— Minha mãe contrata e demite quem quiser — falei. — A casa é nossa. A decisão, dela.

— Até onde eu saiba, nada entra na sua vida sem o seu consentimento. — O sorriso dela foi um corte. — Por isso achei curioso.

— Já acabou? — perguntei, enfiando as mãos nos bolsos do paletó.

— Ainda não começamos. — Ela se aproximou, o queixo erguido. — Você está me evitando, Nikolai?

— Estou ocupado.

— Ocupado com o quê? — Ela encostou as palmas nas minhas lapelas, puxando-me. — Pensando em quem?

Se eu tivesse dito a verdade, teria sido pior. Eu não minto para mim. Mas também não dou munição para ninguém. Tirei o paletó, afrouxei a gravata. Por um segundo, vi — não a ela —, mas a outra. Um riso que eu ainda não ouvi. Um olhar que eu já senti.

Com Ekaterina, válvulas sempre funcionaram. Sexo é uma delas. Não é amor. Não é ternura. É descarga. É silêncio agressivo.

Eu a beijei. Ela correspondeu com a avidez de quem mede domínio. Minha mente tentou empurrar uma imagem contra a outra — a estratégia contra a ingenuidade; o gelo contra o sol. Meu corpo sabe cumprir funções, e cumpriu. Não vou vestir romantismo onde não há. Eu a levei à cama como se se tratasse de fechar um contrato conhecido.

E, no entanto, mesmo enquanto ela gemia o meu nome, a imagem que ardeu no fundo dos meus olhos não era a de Ekaterina. Era a de Nayla, no corredor, segurando uma bandeja como se segurasse uma promessa.

Quando tudo acabou, Ekaterina sorriu, satisfeita, a perna jogada sobre os lençóis de linho.

— Ainda pensa nela? — murmurou, maldosa.

— Saia do meu quarto, Katya.

— Não. — Ela virou-se de barriga para baixo, riscando linhas invisíveis na minha pele com a unha. — Eu pertenço a isso aqui tanto quanto você.

— Você pertence à aliança dos Morozov. Ao que isso nos rende. — Levantei. — Não confunda sua função com direito.

Ela riu, mas nos olhos havia fel.

— Acha mesmo que eu vou dividir você com uma criada?

— Acha mesmo que você me dá alguma coisa para eu dividir? — retruquei, indo ao banheiro.

A água quente caiu sobre meus ombros como martelo. Fiquei alguns minutos sob o chuveiro, mas a água não alterou nada do que me importava. Terminei, enrolei a toalha na cintura e saí. Ekaterina continuava nua sobre a cama, sem pressa de cobrir nada. Exibicionismo calculado. Pura provocação.

— Vá embora — repeti, secando o rosto.

— Faça-me ir.

Eu teria dito a mesma frase minutos depois, mas a Deus — se Ele ainda ouvisse a voz de homens como eu. Porque o que aconteceu então não foi planejado, nem por mim, nem por ela. Foi azar, descuido, destino — chame como quiser.

A porta da suíte se abriu.

Uma silhueta feminina parou no limiar, congelada, como uma estátua pega pelo sol. Cabelos longos presos às pressas, a bandeja com panos e produtos de limpeza nas mãos. Olhos que cresceram e depois tentaram diminuir, como se coubesse a ela encolher para desaparecer.

Nayla.

— O quê… — A voz saiu dela como um sopro. O rosto queimou; os dedos apertaram a bandeja.

Minha mãe. Minha mãe tinha o costume de mandar a equipe cedo para “fazer o quarto” quando eu descia para a academia. Hoje, eu não desci. E ela — pequena, obediente, dedicada — veio cumprir a ordem.

Ekaterina sorriu, satisfeita, esticando o corpo sobre o lençol.

— Bom dia — disse, doce como veneno. — O senhor está ocupado, querida. Pode voltar depois.

Nayla recuou meio passo. Não teria sido difícil para mim dizer “desculpe”, “volte mais tarde”, “isso não foi sua culpa”. Teria sido fácil, até. Mas eu não faço o fácil quando estou em terreno onde alguém pode me ver tropeçar.

O gelo que aprendi a usar como armadura subiu automático, cobrindo a única parte de mim que ainda estava nu.

— Você não bate antes de entrar? — minha voz cortou, seca. — Esta é a minha suíte. Há regras nesta casa. Aprenda-as ou peça para sair.

Vi a expressão desmontar no rosto dela, pedaço por pedaço. Primeiro a surpresa, depois a ferida, por fim o esforço de esconder. Ela baixou os olhos e assentiu com a cabeça, rápido, como quem tenta reparar algo quebrado por culpa sua.

— Desculpe, senhor — sussurrou, já quase fora do quarto.

— E não olhe para mim desse jeito — acrescentei, cruel por reflexo, cruel por autopreservação. — Você está aqui para trabalhar. Não para espiar.

Quando a porta se fechou, Ekaterina soltou um riso baixo.

— Bravo — aplaudiu com ironia. — O grande Pakhan colocando sua empregadinha no lugar.

Joguei a toalha em cima da poltrona.

— Vista-se. Vai embora agora.

— Por quê? Vai atrás dela? — Ela ergueu a sobrancelha.

— Vá embora — repeti, cada sílaba um tijolo.

Ela pegou o vestido com um ar de falsa calma.

— Você não sabe brincar, Nikolai.

— Eu não brinco, Katya. — Abri a porta para ela. — Nunca.

Quando fiquei sozinho, o silêncio não era o mesmo. Tinha espinhos. Cada um deles era uma palavra minha que eu não deveria ter dito daquele jeito. Soube disso porque, ao invés da satisfação habitual depois de estabelecer fronteiras, o que senti foi… incômodo. Uma sensação rara. Próxima a uma falha.

Culpa.

Não gostei do sabor. Nem da palavra.

Vesti-me rápido. Peguei o celular. Desci.

---

A casa, a essa hora, parece um organismo enorme movendo-se em silêncio. Galina alinhava o cronograma com duas funcionárias; Ludmila conferia pães em silêncio; o jardineiro atravessava o corredor com botas molhadas de neve. Eu caminhei até a sala de segurança. Meus homens endireitaram a postura. Não anunciei nada. Não explico meu interesse quando ele tem nome.

— Quero as últimas duas horas das câmeras do corredor Leste e do pátio interno Sul — disse a Mikhail, o motorista que também sabe operar monitores quando necessário.

— Sim, senhor.

Sentei-me na cadeira central. Quatro telas mostravam ângulos diferentes da casa. Em uma delas, eu a vi. Nayla, saindo da minha ala, andando rápido demais para quem não quer que notem que está fugindo. Os ombros tensos, o queixo baixo. Ela se dirigiu ao pátio interno — o que dá vista para os jardins, mas sempre vazios pela manhã. Um refúgio.

Ela parou atrás da estufa, perto da parede coberta de heras secas. A câmera pegava parte do rosto. Bastou. Ela encostou a testa no tijolo frio e começou a chorar.

Foi como se alguém tivesse pousado um punho no meu estômago. Eu causei aquilo. As minhas palavras. Meu cuidado ridículo com a própria vulnerabilidade, afinal, expôs a dela.

— Volte — mandei, e Mikhail retrocedeu a gravação, confuso.

— Senhor?

— Avance para a outra câmera, a do portão do pátio.

Ali, vi algo mais. Mikhail — não, não Mikhail; o outro motorista, o da frota de visitas — Daniil — entrou no quadro vindo do caminho de serviço. Viu Nayla. Parou. E se aproximou com cuidado, as mãos nos bolsos, a cabeça inclinada no gesto universal de quem pergunta “você está bem?”.

Eu me inclinei para frente, sem perceber.

Daniil falou algo. Ela tentou dizer que sim, que estava, mas as lágrimas negavam. Ele se aproximou mais um passo. Não tocou, mas a distância era curta o bastante para ser intromissão. Ele ofereceu um lenço de papel. O lenço. Um gesto miúdo. E, no entanto, cada fibra do meu corpo interpretou aquilo como invasão.

O que me atingiu primeiro não foi raiva. Foi ciúme.

Absurdo? Talvez. Mas a lógica não determina as partes do homem que importam em guerra. E eu vivo em guerra desde antes de saber o nome dela.

— Quem autorizou Daniil a circular na ala interna sem função? — perguntei, a voz baixa demais para ser confusão.

Mikhail engoliu em seco.

— Ele estava levando as chaves do carro reserva para a garagem, senhor.

— Ele tem cinco rotas para isso. Escolheu a que passa pelo pátio. Por quê?

— Eu… não sei, Pakhan.

— Descubra. E a partir de agora, Daniil faz apenas rotas externas. Sem exceção.

Mikhail assentiu, rígido. Não tirei os olhos da tela. Nayla enxugou as lágrimas com o lenço e tentou sorrir para o homem. A gratidão simples de quem nunca foi tratada com cuidado. Eu deveria ter sido esse cuidado. Em vez disso, fui a lâmina.

Quando Daniil se afastou, ela ficou mais um minuto ali. Então ergueu o rosto para o céu cinza — como quem pede fôlego. E voltou ao trabalho. Sem mais.

Fechei os olhos por um segundo. A memória tentou me oferecer a desculpa preferida: “faz parte”, “melhor que ela aprenda”. Joguei as duas frases pela janela. Não são verdades — são atalhos.

— Mikhail — chamei, sem desviar a vista da tela. — A partir de hoje, a suíte principal só pode ser limpa depois das nove. A minha mãe gosta de ajustar cronogramas, mas eu gosto de não ser interrompido. Entendeu?

— Sim, senhor. Vou repassar à governanta.

— E diga a Galina que Nayla ficará na ala Oeste hoje. Nada de Norte.

— Sim, senhor.

Minha voz voltou ao habitual. O gelo reocupou o espaço. Mas agora eu sabia o que ele estava cobrindo.

---

Encontrei Elena no orquidário, onde ela sempre passa a manhã avaliando flores como quem avalia destinos.

— Você mandou a garota limpar a suíte cedo demais — falei, deixando que o acusador dentro de mim vestisse o manto do pragmático.

Minha mãe ergueu os olhos com a calma de quem já me viu nas piores versões.

— E você subiu cedo de mais.

— Eu moro aqui.

— E eu administro o que você não tem tempo de enxergar. — Ela voltou a podar uma haste. — Mas sim. Hoje calculei mal.

— Não quero que se repita.

— Concordo. — Ela apoiou a tesoura e me examinou de cima a baixo. — E você?

— O quê?

— Vai se desculpar?

Ri, curto.

— Eu nunca me desculpo.

— Não estou falando com o Pakhan — disse, com a doçura perigosa das mães. — Estou falando com o homem. Existe um aí dentro, Nikolai. Mesmo que você queira matá-lo, às vezes ele respira.

— Não tenho tempo para…

— Então arrume. Você sempre arruma tempo para aquilo que te interessa. — Aí, um brilho pequeno atravessou os olhos dela. — E isto te interessa.

Minha mãe sabe demais. É uma das razões pelas quais ainda vive.

— Não alimente expectativas — cortei. — A garota trabalha aqui. Só isso.

— Claro. — Elena sorriu como quem concorda para que o filho não se assuste. — Só isso.

Saí do orquidário com a certeza desagradável de que, pela primeira vez em muitos anos, eu poderia não cumprir aquilo que acabei de dizer.

---

No meio da tarde, Sergei bateu na porta, não por educação — por aviso.

— Anatoly vem jantar — disse. — E traz a filha.

— Hoje? — franzi.

— Hoje. — Ele mordeu a ponta de um sorriso. — Imagino que Katya queira repetir a visita.

Sentei-me, recostei, deixei o peso do corpo dizer ao couro da poltrona o óbvio: a noite seria longa.

— Prepare a sala de reuniões. E deixe uma garrafa da reserva na mesa.

— Alguma instrução especial à equipe?

Pensei em Nayla. Na câmera. No lenço. Na palavra “desculpa” que minha mãe havia colocado como faca sobre minha língua.

— Sim — falei, depois de um intervalo curto demais para ser dúvida e longo demais para ser descuido. — A equipe janta cedo hoje. Serviço reduzido no salão. Não quero ninguém fazendo figuração para os Morozov.

— Inclui a brasileira?

— Principalmente.

Sergei assentiu. Ele me conhece o bastante para não perguntar o que não estou pronto para responder.

---

O jantar com Anatoly foi uma partida jogada com peças previsíveis. Ele falou de portos, de remessas, de leis que não nos servem, de homens que precisam ser lembrados de quem manda. Eu ouvi, medi, ajustei números invisíveis no ar. Katya, impecável na máscara dela, tocou meu braço duas vezes sob a mesa. Não dei nada de volta além do que a política exige: um aceno, um brinde, um silêncio que, visto de fora, pode passar por respeito.

No fim, recusei o copo que ela tentou me enfiar na mão.

— Estou cansado — disse. — Preciso dormir.

Ela mordeu o lábio inferior, mas não insistiu. Anatoly preferia negociar comigo a sós do que ver a filha tentando vencer um jogo para o qual eu não jogo.

Quando subimos a escada, percebi a ala oeste vazia — como eu havia ordenado. A certeza de que ela não estava por perto acalmou algo que eu não tinha nomeado. Não confunda isso com fraqueza. É apenas ciência de risco. Eu administro riscos melhor do que administro qualquer outro recurso.

Fechei a porta da suíte e fiquei um minuto encostado nela, olhos no teto. Vi, de novo, como um filme curto demais e ainda assim cortante: a bandeja nas mãos dela, Ekaterina rindo, a minha voz rígida, o rosto de Nayla quebrando e se recompondo ao mesmo tempo. O lenço no pátio. As lágrimas.

Alguns homens nascem sem a habilidade de sentir culpa. Eu não sou um deles. Eu aprendi a calar a culpa como se amordaça um cão. Hoje, o nó da mordaça afrouxou.

Cruzei o quarto e me olhei no espelho sem paralisar o rosto que os outros temem. Vi o homem que construiu um império com sangue e silêncio. E, atrás dele, uma sombra nova: a de alguém que, por um segundo, quis voltar a porta e pedir… perdão.

Eu não pedi. Não hoje.

Mas peguei o celular. Entrei no aplicativo de segurança. Dei zoom no pátio. Um frame congelado: Nayla olhando o céu nublado, tentando respirar por dentro da dor que eu pus ali. Salvei a imagem na pasta onde guardo mapas, plantas, rotas. Não por fetiche. Por controle. Eu arquivo o que não devo esquecer.

— Konstantin — enviei uma mensagem curta. — Preciso do histórico de Daniil. Pessoal e profissional. Hoje.

A resposta veio em segundos: Já em andamento.

Fechei os olhos e respirei fundo. Ao abri-los, a decisão estava tomada, como sempre fica quando um problema recebe nome. Não era política. Não era rotina. Não era piedade. Era território.

Ninguém vai se aproximar dela.

Ninguém vai fazê-la chorar.

Ninguém — inclusive eu.

Eu quase ri da contradição. Um homem como eu prometendo não ferir é um homem de joelhos diante de uma palavra impossível. Ainda assim, eu disse a palavra em silêncio. E quando o Águia diz, o céu escuta.

Apaguei as luzes. A casa se acomodou no barulho dos próprios ossos. Antes de dormir, ouvi meus passos voltando ao corredor do pátio, não de verdade — na imaginação — para acontecer o que deveria ter acontecido: eu chegando antes de Daniil, eu encostando meu casaco nos ombros dela, eu dizendo “foi minha culpa”, eu fazendo a frase menos provável da minha vida.

Não fiz.

Amanhã, talvez.

Ou talvez eu invente outro caminho, um que não exponha, não a machuque, não me desarme.

Fechei os olhos. E, no escuro,

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Comments

Ana Carla F. S.Melquiades

Ana Carla F. S.Melquiades

ixi que homem possessivo /Drool/

2025-08-19

2

Ana Carla F. S.Melquiades

Ana Carla F. S.Melquiades

caraca, muito muito muito bom/Drool/

2025-08-19

1

Loris Boloko Laura

Loris Boloko Laura

as mães sempre sabem /CoolGuy/

2025-08-22

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