O sol ainda mal despontava no horizonte quando Francesca abriu os olhos. A claridade filtrada pelas cortinas da suíte não conseguia dissipar a sombra que se formara em sua mente desde o dia anterior. O teste brutal de Dona Lara ainda ecoava dentro dela — o frio metal da arma, o olhar cortante da sogra, o silêncio pesado depois do disparo. Era impossível esquecer.
Virou-se na cama e encontrou o travesseiro frio. Vitório já havia se levantado. O som de passos firmes no corredor anunciou sua chegada antes mesmo que ele surgisse à porta. Trazia um sorriso leve, quase provocador, como quem tenta dissipar nuvens de tempestade.
— Pronta para mais um dia de “diversão”? — perguntou, com uma ironia suave, envolvendo-a com o braço.
Ela tentou corresponder com um sorriso, mas sua expressão denunciava o peso que carregava.
— Diversão é a última coisa que espero… mas vou encarar.
Desceram juntos, cruzando o longo corredor decorado com quadros de antepassados Maori e lustres pesados que refletiam o dourado da manhã. Cada degrau da escada parecia ecoar mais alto do que o normal, como se a casa toda estivesse escutando.
Ao se aproximarem do salão principal, Francesca percebeu os olhares. Alguns disfarçados, outros abertamente avaliadores. Havia murmúrios de canto, pequenas provocações que pareciam inocentes para um desavisado, mas carregavam veneno para quem conhecia o jogo.
No escritório, Lúcio Lucchesi ajeitava papéis sobre a mesa. Estava impecável como sempre — terno alinhado, gravata perfeitamente ajustada — mas era o brilho calculista nos olhos que chamava atenção. Observava cada movimento de Francesca e Vitório com um interesse quase clínico.
Por trás do semblante de funcionário leal, Lúcio alimentava seu próprio projeto: minar o poder das mulheres da família. Elas eram, para ele, um obstáculo disfarçado de ornamento. E obstáculos existiam para serem removidos.
Francesca passou pelo salão onde Lara conversava com as filhas. A matriarca, sentada em sua poltrona favorita, emanava autoridade como um perfume. Não havia no seu olhar qualquer traço de doçura; apenas avaliação constante. Lara lançou-lhe um olhar demorado, que misturava desafio e análise, como quem pesa uma peça de xadrez antes de movê-la.
— Bom dia, Francesca. — O tom era neutro, mas carregava mais teste do que saudação.
— Bom dia, Dona Lara. — respondeu, sem baixar os olhos.
No almoço, a tensão era palpável. A mesa farta não escondia o silêncio entrecortado por pequenas alfinetadas. Vitório, sentado ao lado da noiva, tentava quebrar o clima com comentários triviais, mas cada tentativa caía no vazio.
Leonardo estava lá, discreto, em pé num canto. Não participava ativamente da conversa, mas nada escapava ao seu olhar. Ele observava como um enxadrista que mapeia o tabuleiro, medindo forças, testando limites.
Ao final da refeição, Francesca se levantou para levar seu prato à cozinha. Foi quando a encontrou: Melinda, a empregada que transitava entre os cômodos com uma liberdade desconfortável. Estava cortando frutas, o ritmo da faca no corte mais lembrava um tambor de guerra.
— Estão te menosprezando, não é? — disse, sem levantar o olhar. — Você é forte, deveria mostrar sua força.
Francesca reconheceu a armadilha nas palavras. Decidiu entrar no jogo, mas no seu próprio ritmo.
— Eu sei que você tem razão, Melinda… dona Lara não merece a família que tem.
Os olhos da empregada brilharam, como se tivesse encontrado uma aliada.
— Verdade. Ela é fraca. Don Antônio precisa de uma mulher forte, você não concorda?
— Claro que sim. — respondeu, mantendo o tom calmo.
Melinda se inclinou, abaixando a voz como quem divide um segredo proibido.
— Você sabe que eu quase fui a namorada dele? D. Carlota já tinha me prometido. Aí ele foi para o Brasil e voltou com essa criança… mas eu vou pegar meu lugar de volta. Depois, você se casa com Vitório e nós duas vamos comandar essas casas.
Francesca sustentou o sorriso, mas por dentro sentia um nó apertar o estômago. Melinda não estava apenas desequilibrada — era perigosa. E pior: tinha certeza de que era predestinada a algo que ninguém mais via, como ninguém percebeu?
Quando Melinda se afastou, Leonardo surgiu na porta da cozinha, silencioso. Encostou-se no batente, cruzou os braços e fitou Francesca por alguns segundos. O sorriso que esboçou não era de gentileza, mas de quem viu uma jogada se concretizar. Sem dizer nada, voltou para o corredor.
Francesca sabia que, naquela casa, cada palavra poderia ser usada contra ela. E que, no jogo que começava, ninguém mostrava todas as cartas logo de início. E seu pai só com um olhar já lhe disse tome cuidado.
Quando a noite caiu, as luzes da mansão acenderam-se, lançando sombras longas nos corredores. Do lado de fora, o vento trazia o cheiro do mar e o murmúrio distante da cidade. Dentro, a sensação era de que cada passo era observado — e, de fato, era.
Lúcio, de sua posição habitual, analisava o comportamento de todos. Seu olhar se deteve em Francesca e Vitório, depois em Lara e Don Antônio, por fim em Leonardo o guarda puxa saco, que parecia não se incomodar em ser notado.
Francesca subiu para o quarto sentindo que o dia havia sido mais longo do que qualquer outro. Ao fechar a porta, encostou-se nela e respirou fundo. Ainda não sabia qual seria sua primeira jogada, mas uma coisa estava clara: o jogo havia começado, e ela não pretendia ser apenas uma peça.
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Atualizado até capítulo 79
Comments
Marina Alves Santos
por enquanto não tô entendendo nada /Smug//Smug/
2025-09-12
1
Marcia Emerich
Achei que ia contar a Lara sobre Melina🤔
2025-08-22
2