A Vida que Não Era Minha
Depois que Mariazinha morreu,
como eu já falei,
eu fiquei nas mãos dos meus pais.
Cinco anos de idade,
e o Mulinha já era pago com maconha pra fazer entrega.
Maconha era meu salário,
meu alimento,
meu calmante.
Ah, vocês perguntam por que eu chamo eles de meus pais?
Porque Mariazinha morava num barraco com três.
Três homens que se serviam como cachorra.
E nenhum dos três sabia quem era meu pai de verdade.
Então, pra eles, eu era filho dos três.
E pra mim, tanto fazia.
Eles eram meus pais.
Era assim que eu tinha que me chamar.
Depois que Mariazinha partiu,
pra ser sincero,
não fez falta.
Ela nunca cuidou de mim.
Eles, pelo menos, me usavam,
me davam o que fumar pra me calar.
E assim eu fui crescendo.
Comida?
Às vezes tinha.
Às vezes não tinha.
Dependia do dia, do humor dos meus “pais”.
Vocês aí que gostam de escrever romance com traficante,
falam de cordãozão de ouro no pescoço,
corrente grossa igual de presídio,
achando bonito.
Deixa eu dizer:
não é assim, não.
Eles são tatuados, sim,
mas não é tatuagem feita por profissional, não.
É feita por eles mesmos, com ferro quente,
com agulha suja.
Tudo torto, tudo errado.
Eu mesmo nunca entrei numa escola.
Nunca aprendi a ler,
nunca aprendi a escrever.
Eu só falava o que ouvia na boca,
aprendi a língua do tráfico,
a língua da rua.
Eu só vivia viajando,
fumando, cheirando, correndo.
Teve um dia que eu fiz uma entrega e não trouxe dinheiro.
Um dos meus “pais” me deu uma surra que eu achei que ia morrer.
Fiquei todo arrebentado,
não sei como ele não me matou.
Ele tava muito noiadão.
E agora escuta o que eu vou dizer:
Traficante que é traficante de verdade,
que quer vencer no crime,
não usa droga.
Não se perde no próprio veneno.
Sabe por quê?
O chefe do morro,
aquele que mandava em tudo,
foi preso.
E quem assumiu foi o filho dele.
O filho do chefe era estudado.
Tinha faculdade.
Se vestia bem.
Era bonito até.
Alto, com 1,85m.
Andava limpo, elegante.
Mas era frio.
Cruel.
Os outros morriam de medo dele.
Porque além de inteligente,
além de bonito,
ele era calculista.
Sabia como acabar com um sem sujar as mãos.
Esse era o verdadeiro chefe.
Não era tatuagem, nem corrente,
nem gritaria.
Era cabeça.
E eu, Mulinha,
era só mais um na engrenagem.
O Sistema Que Me Engoliu em Silêncio
O Chefia, como todo mundo chamava,
era doutor.
Advogado.
Doutor da lei.
Agora, lei de qual lado, eu não sei.
Porque quando um dos parceiros dele era preso,
ele mesmo ia lá e soltava.
Quando era rival,
ele dava um jeito de mandar eliminar dentro do presídio.
Os políça?
Os que recebiam o mal do sistema,
recebiam o bem do tráfico.
Era tudo na base de quem paga mais.
O Chefia era inteligente.
Inteligente até demais.
Enquanto o pai dele fumava, cheirava,
e se afundava,
o Chefia estudava.
Ele não tinha tatuagem.
Não tinha corrente grossa no pescoço.
Não andava gritando na boca.
O Chefia era doutor.
Andava de terno,
com perfume caro,
sapato brilhando,
relógio parecia custar o preço de uma casa.
E o carro dele?
Importado.
Daqueles que a gente nem sabe o nome,
só sabe que vale mais que todas as casas do morro somadas.
As minas que ele andava?
Não era Mariazinha da Boca, não.
Não era suja, magrela, mulambenta.
Era mulher da sociedade.
Moça de apartamento,
de faculdade,
de salto alto.
O Chefia era o dono do morro.
Mas não se misturava com o morro.
Ele mandava.
E quem obedecia, como eu,
era só uma peça.
Era só sobra.
Enquanto eu, Mulinha,
fumava a sobra da pedra,
o Chefia bebia vinho importado.
Enquanto eu era mulinha na viela,
ele era senhor da lei nos tribunais.
Esse era o verdadeiro tráfico.
O que não aparece nos livros que vocês escrevem.
O tráfico que engole quem não tem sobrenome.
E eu?
Eu era invisível.
Eu era engrenagem.
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Atualizado até capítulo 48
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