A Cidade dos Sussurros não era uma cidade de verdade.
Kaela esperava muros altos, torres de pedra, multidões. Mas quando atravessaram o arco de entrada, o que encontraram foi uma vila silenciosa, feita de construções curvadas pelo tempo. As paredes de barro seco e pedra preta estavam cobertas por heras e líquens, e os telhados, despedaçados, eram engolidos pela vegetação. Nenhuma voz. Nenhuma presença. Apenas o som do vento cruzando os corredores vazios.
— Não há ninguém — sussurrou Kaela, instintivamente.
Maire apenas assentiu, como se esperasse por aquilo.
— Os Sussurros não são de carne. São de memória.
Kaela franziu a testa.
— O que isso significa?
— Esta cidade foi construída pelas Vozes da Chama, uma antiga linhagem de mulheres que guardavam os segredos do trovão com canções. Elas podiam lembrar o que nunca viveram. Repetiam palavras esquecidas, ecoando vozes que o império tentou apagar. Mas quando a Ordem os encontrou... calaram-nas todas.
Kaela engoliu em seco, sentindo uma pressão no peito. Era como se a cidade respirasse — mas sem pulmões.
Seguiram até o centro, onde uma estrutura de pedra com colunas partidas ainda resistia. Era circular, semelhante ao altar nas Colinas do Vento, mas mais profundo, como se descesse até o coração da terra.
No centro, havia uma fenda aberta. Estreita, escura. E dentro dela... um sussurro.
Literalmente.
Kaela se aproximou e ouviu.
Uma voz.
Feminina.
Baixinha.
“Ela voltará. Quando a luz acender nas mãos. Quando a espiral for vista três vezes. Quando o trovão falar por dentro.”
Kaela recuou, olhos arregalados.
— Você ouviu?
Maire assentiu, mas sua expressão era grave.
— A cidade sussurra para as suas. Mas nem todas estão prontas para escutar.
— O que significa "três vezes"?
— Três sinais. Três marcas. Três herdeiras.
Kaela ficou imóvel. No peito, o calor aumentava. Como se o símbolo espiral ardesse com nova urgência.
— Já são três, não é? — perguntou ela.
Maire levou a mão ao próprio peito e fechou os olhos.
— Sim. Aurenya. Você. E outra. Em algum lugar. O selo se abriu.
Ao redor da fenda havia inscrições entalhadas. Kaela ajoelhou-se para tocá-las. Pareciam comuns à primeira vista, mas quando seus dedos seguiram o traço do espiral esculpido na pedra, algo vibrou.
Uma onda de energia a atingiu como um raio invisível.
Seus olhos se fecharam à força. As imagens vieram como visões.
Ela viu uma mulher com a pele como bronze polido, cabelos crespos presos por fios dourados, dançando em meio a um campo de tempestade. Raios giravam ao redor dela como serpentes celestes.
Ela viu sete tronos em ruínas, cada um com uma marca diferente: fogo, mar, pedra, sombra, ar, raiz… e trovão.
Ela viu espelhos partidos. E ela mesma refletida em todos eles.
Kaela gritou.
Quando abriu os olhos, estava deitada no chão, e Maire a segurava pelos ombros.
— Está tudo bem — disse a guardiã. — Você tocou a pedra das Memórias.
Kaela levou a mão à cabeça. Ainda sentia as vozes rodando dentro do crânio.
— O que foi aquilo?
— Um eco. Um fragmento. Você viu parte do que foi esquecido. O que está selado em você tenta se lembrar.
— E os tronos?
Maire ficou em silêncio por longos segundos antes de responder:
— O trovão era um dos sete elementos. Cada trono representava um. Mas o das mulheres era o único que não podia ser manipulado por palavras. Ele só respondia à verdade.
— À verdade?
— Sim. Por isso os Patriarcas temem vocês. Porque o trovão fala com quem é inteiro. E esse império foi construído sobre mentiras.
Quando voltaram à superfície, Kaela notou algo estranho: marcas no chão. Pegadas. Recentes.
Maire também viu.
— Estamos sendo seguidas.
Kaela virou-se depressa.
— Eles?
— Sim. Os Caçadores de Silêncio.
Maire agarrou o pulso de Kaela e começou a correr entre as construções abandonadas. O som de botas pesadas começou a ecoar pelas vielas — primeiro longe, depois mais perto.
Kaela tropeçou, mas Maire a puxou.
— Não pare. Não aqui.
— A fenda! Podemos nos esconder lá!
Maire hesitou.
— A cidade protege, mas também testa. Se entrar de novo, pode não sair.
Kaela encarou a escuridão da fenda.
— Eles vão nos matar.
Maire não respondeu. E saltou.
Kaela foi logo atrás.
A queda foi curta, mas a escuridão absoluta. Quando Kaela caiu, rolou sobre o chão de pedra. O ar cheirava a terra antiga, a madeira queimada, a metal antigo. Pequenos brilhos flutuavam como vaga-lumes azulados.
— Onde estamos?
Maire se levantou.
— Na Cripta das Vozes. A última morada das mulheres que sussurravam. Aqui... talvez encontremos mais do que fuga. Talvez encontremos uma lembrança.
No fundo da cripta, algo cintilava. Um pedestal com uma esfera de vidro rachada, envolta por fios de prata viva.
Kaela se aproximou.
No instante em que seus dedos tocaram a esfera, o trovão rugiu do lado de fora — mesmo sem nuvem no céu.
Dentro da esfera, uma imagem: o rosto de uma jovem que ela nunca vira, mas reconheceu. Aurenya.
A esfera pulsou, e a imagem sumiu. No lugar, surgiu uma mão — a mesma que aparecera nas visões anteriores — com um bracelete dourado com três espirais entrelaçados.
E então, a esfera se desfez em luz.
Kaela ficou em silêncio.
— O que era isso? — murmurou.
Maire, com os olhos arregalados, respondeu num fio de voz:
— Um eco da Rainha Original. A esfera registrou a próxima herdeira. Isso é um chamado. Ela está pronta para ser encontrada.
Kaela olhou para a fenda acima. Os sons dos Caçadores pareciam mais distantes agora. Como se a própria cidade estivesse escondendo-as.
Ela respirou fundo.
— Então vamos atrás dela.
Maire sorriu.
— Agora sim. A tempestade está começando.
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Atualizado até capítulo 59
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