O som dos grilos e do vento noturno era a única melodia nas florestas de Erynnor. O luar filtrava-se entre as copas altas, derramando prata sobre os ombros de Kaela e Maire enquanto atravessavam o bosque. Já haviam caminhado por dois dias em silêncio contido — Maire à frente, sempre alerta, e Kaela absorvendo tudo com os olhos bem abertos.
A floresta não era apenas floresta. Cada árvore parecia antiga demais, cada pedra coberta de musgo guardava marcas como runas apagadas pelo tempo. E Kaela sentia. A pulsação na terra. Como se algo vivo e antigo observasse. Esperando.
— Essa trilha leva até as Colinas do Vento — explicou Maire, parando ao pé de uma árvore seca com marcas em espiral no tronco. — Era lá que os treinamentos das herdeiras aconteciam. Quando ainda havia um trono para elas.
Kaela se aproximou do tronco. Tocou a madeira.
— Você treinou lá?
Maire olhou para o alto das folhas, os olhos cheios de lembrança.
— Não. Quando eu nasci, as últimas Rainhas já tinham caído. Cresci entre nômades, mulheres que guardavam fragmentos das velhas histórias. Minha mãe morreu tentando proteger um manuscrito que continha os nomes das primeiras sete herdeiras. Foi por isso que jurei nunca deixar o trovão se apagar.
Kaela respirou fundo. Aquela era uma história que não conhecia — uma que não existia nos textos do templo. Lá, só havia leis. Mandamentos. E silêncio.
— Por que o império tem tanto medo de nós?
Maire virou-se lentamente para ela.
— Porque as Rainhas Tempestuosas não obedeciam.
Na manhã seguinte, as colinas do vento surgiram como uma muralha de pedras altas e nuvens baixas. O vento assobiava entre os vales estreitos e cada passo soava como um chamado.
— Há algo aqui — Kaela disse, franzindo o cenho.
— Você sente também.
— Sim. Mas não sei explicar.
Maire sorriu.
— É o eco do trovão antigo. Ele nunca abandonou este lugar. Você só está aprendendo a ouvir.
Caminharam por horas até chegarem ao topo da maior colina. Ali, havia ruínas. Pedras largas, caídas em círculo, e no centro — um altar partido, envolto por trepadeiras.
Kaela aproximou-se, ajoelhando-se diante do que um dia fora o centro do poder feminino no império. O local era silencioso, mas dentro dela, o trovão pulsava como um tambor.
Maire colocou a mão sobre o ombro da garota.
— Este foi o Círculo das Chamadas. Aqui, as herdeiras despertavam seus nomes verdadeiros.
— Nomes verdadeiros?
— Cada herdeira tem dois nomes: aquele que o mundo lhe dá... e o que o trovão revela. É o segundo que carrega o poder.
Kaela ficou em silêncio por longos minutos.
— Eu quero saber o meu.
Maire assentiu.
— Sente-se no centro. Feche os olhos. Escute o que vier.
O vento se intensificou. As folhas dançaram em espiral. Kaela sentiu o calor no peito expandir-se até os ombros, braços e coluna. Seu corpo pareceu se dissolver no chão, no ar, na luz do céu.
Uma escuridão caiu sobre sua visão fechada.
Depois, vozes.
Muitas. Femininas. Fortes.
"Kaela. Não é esse o nome que o trovão te deu."
Ela viu flashes: uma mulher de armadura feita de nuvens e raios; uma criança nascida em meio à tempestade; um círculo de espelhos antigos, onde cada reflexo era um destino.
"Você foi feita para comandar a tormenta. Para abrir o céu. Para gritar o nome das que vieram antes. Seu nome verdadeiro é..."
A voz se partiu em mil faíscas.
Kaela abriu os olhos.
Estava sozinha no centro das ruínas. Maire estava mais atrás, observando em silêncio.
— E então?
Kaela colocou a mão sobre o peito.
— Eu... ouvi muitas vozes. Mas o nome... ele se partiu.
Maire não pareceu surpresa.
— Porque ainda falta algo.
— O quê?
— As outras.
Enquanto as duas descansavam, abrigadas entre as pedras, Maire revelou mais do que sabia.
— Há um mapa. Fragmentado. Guardado em partes. As antigas Rainhas deixaram para trás pistas — templos secretos, objetos marcados, canções cifradas. Se reunirmos tudo, poderemos encontrar as outras herdeiras antes do império.
— E as outras... elas sentem isso? Como eu senti?
— Sim. Mas não compreendem. Algumas resistem. Outras têm medo. E algumas... vão preferir a ordem à liberdade.
Kaela franziu o cenho.
— Quer dizer que nem todas vão querer se unir?
— Quer dizer que algumas foram criadas para odiar o que são.
Um silêncio pesado caiu.
— E onde está a próxima? — Kaela perguntou.
Maire abriu um rolo de tecido grosso com marcas em vermelho.
— A primeira parte do mapa está na Cidade dos Sussurros. Uma vila antiga, onde os ecos do trovão foram enterrados por sacerdotes. Dizem que uma das descendentes da Casa da Voz Silenciosa está lá. Se ela ainda vive, deve ser a próxima a despertar.
— Quando partimos?
— Agora. Cada dia é uma chance que o império ganha de apagar tudo outra vez.
Do outro lado do continente, o Alto Patriarca Daeron recebia relatórios. Três sinais em uma semana. Um no templo. Um na vila de Vayenn. Um eco detectado nas Colinas do Vento.
— Elas estão se movendo — disse Arik, o conselheiro.
— Não. Elas estão acordando — Daeron corrigiu, os olhos fixos nas tapeçarias antigas.
Ele se aproximou de um espelho entalhado em prata. Nele, gravado em linguagem arcana, havia o nome da primeira Rainha. Mas o reflexo estava rachado.
— Enviem os Caçadores. Todos. Queimem os arquivos. Interroguem os servos. Cada mulher com olhos dourados deve ser interrogada. Cada símbolo espiral, apagado. Não deixem nada.
— E se encontrarmos alguma?
Daeron virou-se lentamente.
— Matem. Antes que descubram quem são.
Na trilha de pedra rumo à Cidade dos Sussurros, Kaela parou ao sentir algo no vento. Um calor no peito. Uma lembrança.
Aurenya.
Ela não sabia o nome da garota, nem onde estava. Mas sentia o eco. Como um fio invisível ligando as duas.
— Alguém me ouviu — sussurrou Kaela.
Maire olhou para ela.
— Sim. Agora é sua vez de ouvir de volta.
E, com passos firmes, as duas desceram pela encosta, levando consigo a promessa do trovão.
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Atualizado até capítulo 59
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