Mansão Emiliano — Pátio externo
O som das folhas secas quebrando sob os passos apressados era quase abafado pelo riso e conversas femininas que ecoavam no jardim. Eleonora e Bianca Costtelo, desfilavam com certa ansiedade pelo pátio externo da mansão, como se ambas tivessem certeza de que mundo lhes pertencesse. E, na verdade, naquela mansão, pertencia mesmo. Mas apenas a mansão.
As duas garotas, apesar de terem uma vida luxuosa, agraciada pela fortuna do pai e, tendo ambas, concluído a faculdade de publicidade em Veneza, nenhuma delas que voar para longe do ninho, ou melhor, para longe do dinheiro e da vida bancada por Emiliano. O patriarca, por outro lado, não parece se importar em servir de fonte para as filhas, e nem para o fato de que não havia tido filhos homens para continuar o legado da sua família, assim como não obrigou as suas filhas a se casarem por conveniência em prol dos negócios.
O motivo era simples: Emiliano tinha Lúcia debaixo do seu teto. E, ao invés de usar suas próprias filhas para abarcar os problemas financeiros da família, porque não usar uma outra menina que não é sua filha e ainda sendo de linhagem poderosa? Para Emiliano, a resposta era óbvia.
Eleonora, a mais velha, tinha 26 anos e um ar de quem sempre sabia mais do que dizia —mas a verdade era que ela apenas fingia. Os cabelos eram longos e lisos como mel, o batom vermelho combinava com seu olhar felino e ambicioso. Bianca, com 24 anos, era mais impulsiva — olhos escuros sempre semicerrados, como se o mundo fosse uma ofensa pessoal.
Lúcia observava de longe, sentada em um banco no jardim, quando as irmãs chegaram ao motivo de sua pressa desenfreada. Lúcia, acabou revirando os olhos automaticamente ao ver a cena.
Eleonora e Bianca riam e jogavam os cabelos para o lado e fingiam estar distraídas quando Matteo chegou perto para cumprimentá-las. Para Lúcia, apesar da cena vergonhosa, até atendia o comportamento das irmãs, afinal, se tratava da visita do dono de um Banco.
Matteo Bellandi era o único que as fazia baixar o tom de voz. Alto, postura impecável, terno sob medida, sorriso fácil. Tinha os cabelos castanhos ondulados, sempre penteados de forma despreocupadamente elegante, e olhos cor de âmbar, que variavam entre o dourado e o mel, dependendo da luz. Filho de Giulio Bellandi, presidente do Banco San Costanzo, uma instituição antiga, tradicional e que, nos bastidores, lavava dinheiro para metade da máfia do norte da Itália.
Matteo era o herdeiro direto. Jovem, rico e irresistível. Mas ao contrário do que esperavam, não se deixava prender por mulheres que agiam como donzelas famintas por poder.
Ele só tinha olhos para uma: Lúcia. Justo aquele que não poderia ter.
Lucia mal viu o tempo passar quando deixou de lado as irmãs histéricas e voltou sua atenção para o livro em sua mão. A metamorfose, de Franz Kafka. Um de seus muitos autores favoritos. E agora esse livro entrou para a sua biblioteca pessoal também. Talvez, ela, em parte, se identificasse com Gregor Samsa, que, era valorizado como um objeto, como um meio para o fim.
No entanto, para ela, ser transformada em um inseto não seria tão ruim, ao menos aproveitaria mais da vida.
— Você vai me ignorar de novo? Assim como fez da última vez? — A voz grossa e masculina de Matteo ressoou em meio ao jardim, tirando Lúcia de seus pensamentos.
Ela ergueu os olhos, a expressão neutra.
— Estou lendo. E você está interrompendo — Ela disse, simplista e sem rodeios.
Ele sorriu.
— Sabia que você é a única pessoa que fala comigo como se eu não fosse filho do dono de um império bancário?
Ela fechou o livro com calma, encarando-o.
— E isso é algum tipo de crime por acaso? — Questionou, irônica.
Ele riu de verdade dessa vez. Era por isso que gostava dela. Lúcia não o tratava como um troféu, nem como uma escada. E era por esse motivo que Matteo era, até então, o único amigo que Lúcia tinha que não precisava esconder de Emiliano, não que ela tivesse muitos. Mas Matteo, era filho de alguém importante e ao um mero empregado do qual ela era proibida de conversar. E ainda sim, ainda sendo o único, Lúcia não poderia contar tudo para ele. Matteo era o tipo de amigo que a ajudava a distrair, mas era imaturo mesmo sendo da mesma idade que ela.
— Bom saber que seu senso de humor está intacto. Vou precisar ouvir mais da sua ironia quando eu herdar o banco, e te sequestrar dessa casa maldita — disse ele, meio em tom de brincadeira, meio sério. — Colocar você num apartamento em Florença, fazer você estudar o que quiser. Prometo que vai ser livre, só vai precisar me aturar em troca.
Ela não respondeu de imediato. Olhou para o horizonte.
— Então o preço é muito alto.
Ele sorriu de lado, e se sentou ao lado dela, esticando os braços e deitando a cabeça para trás, como se estivesse em busca de Lúcia para relaxar e realmente estava.
A jovem voltou a abrir o livro, não se sentindo incomodada pela presença de Matteo.
— Você está prestes a fazer vinte, não é? — ele comentou depois de um tempo, mudando de assunto com sutileza. — Vai ter uma festa esse ano?
Lúcia balançou a cabeça com um sorrisinho fraco.
— Claro que não. A última vez que alguém fez algo no meu aniversário foi quando Antonella me deu um bolinho de chocolate com morango e cantou parabéns em sussurros, na cozinha. — Seus olhos ficaram distantes. — Eu tinha treze anos.
— Ela ainda trabalha aqui?
— Trabalha, sim. Toda vez que pode, me chama no fim do dia. — Ela sorriu mais sincera agora. — E ainda faz aquele mesmo bolinho. É o melhor presente que eu poderia querer. Você sabe como eu sou louca por morangos.
Ele sorriu com a confissão. Matteo sabia que sim, o jovem perdeu as contas de quantas vezes já trouxe aos punhados para ela e, costumava brincar que, o cabelo de Lúcia era dessa cor por causa dos morangos. Mas o sorriso dele se desfez aos poucos e o olhar ficou mais sério.
— Se eu dissesse que... — Começou Matteo mais uma vez, agora com a voz um pouco mais baixa. — Que, estava falando sério agora pouco sobre, que, se você quiser ir embora comigo, de verdade, sem permissão, eu te levo. Sem olhar pra trás? Acreditaria em mim?
Ela continuou folheando as páginas, mas responde brevemente:
— Não é que eu não acreditei em você. É apenas a realidade, esse tipo de situação não funciona assim.
— Por quê? — Ele questionou, agora olhando para ela como se estivesse apreciando uma pintura num museu.
Lúcia Sorriu de lado, um sorriso que mais parecia tristeza disfarçada.
— Porque liberdade não é algo que os Costtelo permitem.
Ele baixou os olhos, com o punho apertado ao lado do corpo. A forma como tratavam Lúcia o corroía por dentro. Aquela mansão era um teatro, onde ela era só figurante — invisível, útil, mas nunca ouvida.
— Um dia, Lúcia... — ele sussurrou — você vai ver. Eu vou tirar você daqui.
Ela o encarou, mas com ternura. Ter alguém que estivesse disposto a fazer algo por ela, era mais do que ela podia pedir, porém, Lúcia sabia que Matteo não faria isso só por presar pela amizade dela, ele faria para tê-la. E ela não sairia de uma prisão para outra, não. Se saísse dessa casa, se finalmente conseguisse, ela iria ser livre o suficiente para procurar sua família, vivos ou mortos.
— Matteo, você é meu melhor amigo. Isso já me basta.
As palavras foram como uma lâmina. Ele sorriu para não mostrar que doía.
E Lúcia, mesmo percebendo, preferiu não aprofundar. Amizade era tudo que ela podia oferecer agora. Matteo era luz demais para ser envenenado pelos planos sombrios que já germinavam em seu coração, ele não teria espaço lá.
Mas Matteo, não parecia satisfeito com a resposta. No entanto, resolveu deixar o assunto de lado. Estava pronto a perguntá-la sobre o livro que lia quando um dos empregados os atrapalhou.
— Senhorita. —A moça, cujo cabelos grisalhos contrastava com a roupa escura, chamou Lúcia. — O senhor Don Emiliano, está a chamando no escritório.
[...]
O corredor até o escritório de Don Emiliano era longo e silencioso, ladeado por tapeçarias e móveis antigos que pareciam observá-la com olhos invisíveis. Lúcia nunca gostara daquele caminho. Havia algo solene e sufocante nas paredes escuras, como se os próprios quadros carregassem segredos demais para um simples enfeite.
Ela parou em frente à porta. Respirou fundo. Duas batidas leves com os nós dos dedos.
— Entre — respondeu a voz grave lá de dentro.
O escritório cheirava a charuto, madeira velha e passado. Don Emiliano estava de pé, olhando pela grande janela que dava vista ao jardim. Um copo de whisky intacto sobre a mesa e um maço de papéis desorganizados ao lado. A claridade filtrada do entardecer desenhava sua silhueta larga e imponente.
— Mandou me chamar? — Lúcia perguntou, mantendo a postura ereta, mas os olhos abaixados.
Ele demorou a responder.
— Está ficando mais parecida com sua mãe — disse enfim, sem se virar.
A frase caiu como pedra. Lúcia engoliu seco. Ele quase nunca mencionava ela. E ela mesma mal se lembrava.
— Obrigada… eu acho.
Ele se virou, por fim. Os olhos frios, mas avaliadores. Como se tentasse decifrá-la de novo.
— Em dois dias haverá uma grande festa nesta casa — anunciou. — Tudo já está sendo preparado, inclusive, você também precisa.
Lúcia franziu o cenho. Dentre tudo que Emiliano podia dizer a ela, uma festa era algo inesperado.
— Uma festa?
— Sim.
— Mas… eu não entendo. Eu nunca fui chamada para festas da família.
Don Emiliano girou lentamente o anel grosso no dedo anelar.
— E desta vez será diferente.
— Por quê? — Ela sabia que perguntar de mais o irritava, mas era teimosa, gostava de brincar com os limites. Afinal, limite era a única coisa dada a ela.
Emiliano a olhou de escanteio.
— Porque os tempos mudaram. E eu tenho planos para você, ragazza.
Ela manteve a compostura, mas por dentro sentia o estômago se contrair. Porém resolveu compartilhar já que o Don não parecia lembrar.
— É o meu aniversário.
Emiliano não respondeu. Apenas se sentou, relaxando na poltrona de couro como se aquele detalhe fosse irrelevante.
— Considere isso um presente — disse, pegando o copo de whisky e bebendo um gole. — Você finalmente será notada.
Aquela frase ficou martelando na mente de Lúcia. Notada?
Durante dezenove anos, ela foi invisível. Um espectro entre corredores, uma sombra tolerada, mas nunca incluída. E agora, de repente, uma festa?
Don Emiliano não falava muito, mas Lúcia aprendera, ao longo dos anos, a escutar o que não era dito. E naquele silêncio, havia algo... denso. Como uma névoa espessa prestes a engolir tudo.
— Posso ir? — perguntou, firme.
Ele assentiu.
— Sim. E, Lúcia… — chamou antes que ela cruzasse a porta.
Ela se virou, atenta.
— Não decepcione.
Ela sustentou o olhar dele por um instante, depois saiu. A madeira da porta fechando atrás de si soou como uma sentença.
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Atualizado até capítulo 24
Comments
Maria Terezinha Bolico
Eu disse que o velho bandido ia vender a pobre da Lúcia para algum chefe da máfia 🤭🤭
2025-10-09
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