...Gleice...
O jantar era entediante. Pior do que eu esperava.
Comida requintada, taças tilintando, conversas forçadas sobre contratos, heranças, e o futuro glorioso da união entre duas famílias que jamais se suportaram. Uma encenação digna de novela barata.
Mas o palco estava incompleto.
Marina ainda não havia voltado.
Eu notei o sumiço no segundo em que ela deixou a sala. Vi o olhar dela se arrastar até Jennifer antes de sair, e reconheci a tensão — aquele tipo de tensão que você só conhece quando já queimou nela uma vez.
Jennifer foi atrás. Discreta, alguns minutos depois. Como quem vai ao banheiro ou retocar o batom.
Eu ri por dentro. Não era difícil fazer a conta.
— Então é assim, docinha? Ainda corre atrás da mesma fonte velha de prazer? — pensei, girando o vinho na taça com um tédio sabor ironia.
Enquanto os velhos trocavam palavras solenes sobre alianças e cláusulas, eu contava os minutos.
Doze.
Quinze.
Vinte e dois.
Foi no vigésimo terceiro que Marina reapareceu. Descabelada com elegância, o rosto corado, os olhos tentando parecer calmos. Mas... eu sentia.
O cheiro de desejo disfarçado de perfume. O andar incômodo de quem não consegue esconder o que aconteceu entre as pernas.
E eu sorri.
Não por ciúmes — longe disso.
Mas por reconhecer fraquezas. Por ver o jogo antes mesmo da primeira peça cair.
— Se atrasou, boneca. Algum problema pra encontrar o caminho até a mesa... ou se perdeu em outros cômodos? — provoquei em voz alta, fazendo questão de que todos escutassem.
A colher da mãe dela caiu. Jennifer fingiu não estar rindo.
Mas Marina... ah, Marina queimou por dentro.
Veio até a mesa com passos cuidadosos. A compostura era linda, mesmo falsa.
Sussurrei apenas pra ela:
— Engraçado... achei que você estivesse mais molhada do que quente.
O susto nos olhos dela valeu cada segundo da espera.
Ela sentou-se sem me responder, mas o rubor nas bochechas dizia tudo.
Ela estava tentando esquecer.
E eu, pronta pra fazê-la lembrar.
...[...]...
Jennifer reapareceu no jantar com a mesma elegância ensaiada de sempre. Os cabelos impecáveis, os olhos brilhando com aquela segurança que só quem conhece todos os segredos da mesa poderia carregar.
Nas mãos, a pasta preta.
No rosto, um sorriso que me fez querer cuspir o vinho.
Ela caminhou até nós, parando entre mim e Marina — que ainda tentava parecer inteira, apesar dos sinais gritantes de que havia sido devorada no andar de cima.
— Conforme o combinado entre as famílias.— começou ela,— o contrato de união está pronto. Revisado, validado e... com todas as exigências de ambas as partes respeitadas.
Ouvi as palavras como se estivessem sendo ditas dentro d’água.
Contrato. União. Exigências.
Como se fosse só isso.
Como se nós duas fôssemos apenas ferramentas para manter um sobrenome respirando.
Jennifer abriu a pasta com calma, os dedos deslizando pelas folhas como se folheasse algo sagrado.
E então colocou o contrato diante de Marina.
Não de mim.
Aquilo me fez rir por dentro.
Ela ainda pensa que controla a Marina com a mesma facilidade de antes?
Olhei de lado, e Marina sequer teve coragem de encarar os papéis. O rosto ainda tinha vestígios de... prazer. Ou culpa. Ou os dois.
— Ora, que bonito. — comentei alto o suficiente para a mesa toda ouvir. — Casamentos decididos em testamentos e formalizados por ex-amantes. Tão moderno.
Jennifer fingiu não ouvir.
Mas seu maxilar denunciou o incômodo.
Meu pai fez um gesto para que eu também assinasse. Peguei a caneta como quem segura uma faca. Li cada cláusula com um tédio agressivo.
— Diga, Jennifer... entre uma folha e outra, você chegou a sussurrar "minha" no ouvido dela? Ou isso ficou só pro pós-assinatura? — disparei, sem nem tirar os olhos do papel.
Marina me fuzilou com os olhos. Jennifer engoliu seco.
Assinei.
O golpe final? Dei com o olhar.
Cruzei os olhos com Marina por um segundo a mais que o necessário.
— Agora você é minha. Oficialmente. Vamos ver se aguenta o peso disso.
A taça tilintou quando bati a assinatura na mesa.
Brindes foram feitos. Sorrisos falsos distribuídos.
Mas só eu sabia o quanto aquilo era só o começo.
A última taça de vinho ainda girava na minha mão quando meu pai pigarreou, com aquele ar solene de quem estava prestes a jogar mais uma bomba:
— Ah, e como manda a tradição... — ele começou, olhando para mim e Marina — vocês dormirão juntas a partir desta noite. Afinal, é um noivado, não uma encenação.
O silêncio que se instalou foi tão incômodo quanto as roupas formais em nossos corpos.
Virei lentamente o rosto para Marina.
Ela nem disfarçava o espanto. Aqueles olhos sempre cheios de orgulho vacilaram por um segundo, e eu aproveitei como uma vitória.
— Claro, pai. Vai ser... uma noite inesquecível. — sorri com a doçura de veneno. — Mal posso esperar.
Marina tentou manter a pose, mas a mandíbula tensa e os punhos cerrados à mesa contavam outra história.
Jennifer, ainda ao lado, apenas desviou o olhar. Como se de repente o papel dela tivesse acabado.
E talvez tivesse mesmo.
Fui a primeira a levantar da mesa. Nem esperei Marina. Subi as escadas com passos lentos, quase rítmicos, fazendo questão de que ouvisse o som dos meus saltos ecoando no corredor.
Quando entrei no quarto, a mobília não me surpreendeu — cara demais, antiga demais.
Mas o cheiro…
Cheirava a ela.
A infância mal resolvida, a raiva, a lembrança do que fui obrigada a aceitar e do que nunca pedi.
Me sentei na beirada da cama, tirando os brincos. E foi aí que a porta se abriu.
Marina.
Vestido impecável, cabelo solto, olhar em chamas.
— Nem pense que isso vai se repetir todas as noites. — ela disse antes mesmo de fechar a porta.
— Você diz o quê? O jantar, a encenação... ou o que fez com a sua advogada? — respondi, sem olhar, mexendo na pulseira de ouro no pulso.
Ela não respondeu. Ótimo.
Porque o silêncio dela me alimentava.
— Relaxa. Eu não mordo... a menos que peça. — completei, puxando as cobertas com naturalidade. — A cama é sua metade. A outra é minha. Só não garanto que eu fique do meu lado se você continuar suando assim toda vez que me vê.
Ela virou de costas, foi até o armário, procurando qualquer desculpa pra não me encarar. Mas eu já sabia: a tensão estava ali.
Pulsando.
Crescendo.
E a noite mal começou.
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Atualizado até capítulo 93
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