Acordei com a luz invadindo o quarto.
O mesmo quarto. O mesmo abajur florido, os mesmos móveis claros, a mesma colcha que minha mãe fazia questão de manter intocada.
Nada havia mudado.
Exceto eu.
Talvez fosse isso que tornava tudo mais estranho.
Levantei devagar, com os pés descalços tocando o piso frio de mármore, cada passo ecoando na memória como um chamado antigo.
Troquei de roupa sem pensar muito, vesti uma camisa larga, amarrei o cabelo de qualquer jeito.
Eu só queria café.
Mas, claro...
Eu deveria saber que nesta casa, nem o café vinha sem complicações.
Ao me aproximar da cozinha, ouvi o som das xícaras e talheres. O cheiro de pão recém-saído do forno preenchia o ar, junto com algo mais doce... familiar. Um perfume caro, seco, com fundo de especiarias.
Quando entrei, ela estava de costas, encostada na bancada, lendo papéis com uma xícara na mão.
Jennifer.
Vestida num conjunto sóbrio, cabelo preso num coque elegante, óculos pendendo no nariz — como sempre, parecendo saída de um editorial de poder e tentação.
— Uau. Então é verdade. A filha pródiga voltou. — ela disse, sem nem olhar pra mim, folheando os papéis.
— E você ainda se mete onde não é chamada — rebati, com a voz ainda rouca de sono.
Ela se virou com um meio sorriso, olhos brilhando com aquele deboche que me fazia odiar... e desejar.
— Você sabe que seu pai nunca toma decisões sem mim. E que sua mãe só respira quando ele permite. Então, tecnicamente... eu fui chamada, sim.
— Que conveniente.
Fui até a cafeteira e servi uma xícara. Sabia que ela estava me olhando. Jennifer nunca perdia uma oportunidade de dissecar alguém com o olhar — ainda mais quando esse alguém era eu.
— Ainda dorme com roupa de hospital? — ela provocou, olhando minha camisa larga. — Nostalgia ou saudade de mim?
Levei o café à boca antes de responder. Um gole. Dois. Depois, olhei nos olhos dela.
— Nem tudo que deixei no hospital valia a pena sentir falta.
— Ai. Isso doeu. — Ela sorriu, se aproximando, parando perto demais. — Mas tudo bem. Sei que mente quando está acordando. E quando está gozando também.
Arqueei a sobrancelha, mas não recuei.
— E você ainda fala demais. Aposto que ainda não aprendeu a ficar calada com a boca cheia.
Jennifer riu, mordendo levemente o lábio inferior. O olhar percorreu meu corpo de cima a baixo com aquela mistura de curiosidade e fome que ela nunca escondeu.
— A mansão ficou mais interessante agora que você voltou. — ela murmurou. — Vai ser divertido… observar o caos.
— Você não vai observar nada. Vai ficar fora disso.
Cruzei os braços.
— Gleice já é problema suficiente.
— Ah, a futura esposa. — Jennifer deu um passo para o lado, girando levemente a colher dentro da xícara. — A mulher que você odiava com a intensidade de quem já amou, ou deseja amar.
— Cala a boca, Jennifer.
— Nem morta.
Ela sorriu, pegou a pasta de documentos e passou por mim, roçando o ombro no meu de propósito.
Parou na porta.
— Se quiser voltar a discutir “ética médica” no meu apartamento... sabe onde me encontrar.
E saiu.
Fiquei ali, sozinha com a xícara e a raiva.
O dia mal tinha começado...
...e eu já queria que ele acabasse.
O relógio da parede marcava onze e quarenta quando ouvi os portões se abrirem.
Eu estava sentada no jardim dos fundos, tentando me convencer de que o sol era suficiente pra me distrair. Mas era como sentar no palco esperando o espetáculo começar — e o papel principal era dela.
Gleice Monteverde.
A mulher que eu odiava desde que tinha idade pra entender o que era raiva.
Ou... talvez fosse outra coisa. Mas eu nunca me dei o trabalho de decifrar.
Levantei quando ouvi os passos ecoarem pelo mármore do corredor interno. Vozes abafadas. Um som seco de salto. Depois, silêncio.
A porta de vidro se abriu.
E ela entrou.
Como se estivesse chegando no próprio funeral — ou no meu.
O mesmo andar felino, o mesmo olhar afiado. Usava calça preta, camisa de botão dobrada até os cotovelos, e um sorriso nos lábios que nunca significava nada bom.
— Uau. Quem diria... a princesa voltou mesmo. E viva. — ela disse, me olhando de cima a baixo.
— Achei que você não fosse aparecer antes do jantar.
— E perder a chance de ver sua cara sem maquiagem nem filtro? Jamais.
Cruzei os braços, mantendo a expressão neutra. Ou tentando.
— Já chegou distribuindo veneno. Vai ser assim até a cerimônia ou pretende guardar um pouco pro casamento?
Ela deu um risinho de lado e se aproximou, pegando uma maçã da fruteira na mesa como se estivesse em casa — como se tudo ali pertencesse a ela agora.
— Só tô me aquecendo. Afinal, você me odiava com tanta paixão… que eu comecei a achar que era amor mal resolvido.
— Você sempre achou muita coisa, Gleice.
— E acerto mais do que erro, infelizmente. — mordeu a maçã, olhando direto nos meus olhos. — Então me conta, como foi voltar pra essa casa de bonecas tristes? Relembrou os traumas, os castigos, ou só ficou ocupada demais nos braços da Jennifer?
Pisquei uma vez.
Ela sabia. Claro que sabia.
— Jennifer é assunto antigo.
— Ah, que pena. Ela ainda fala de você como se fosse uma deusa caída. — Ela inclinou a cabeça. — Aposto que foi um espetáculo... a queda.
— Você devia se preocupar menos com meu passado e mais com o fato de que vamos nos casar por obrigação, e não por escolha.
Gleice se aproximou um pouco mais. O sorriso desapareceu — mas o sarcasmo ficou, preso nos olhos.
— Querida… você acha mesmo que eu escolheria você?
Ela disse isso devagar, quase como um sussurro venenoso.
Fiquei imóvel.
Por dentro, cada músculo tenso. Por fora, fria como gelo.
Ela mordeu a maçã mais uma vez e começou a se afastar.
— Nos vemos no jantar, princesa. Tente parecer menos entediada... os fotógrafos vão adorar.
E saiu.
E eu fiquei ali, tentando lembrar por que aceitei esse acordo.
Ou melhor... tentando lembrar por que parte de mim ainda reagia quando ela entrava na sala.
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Atualizado até capítulo 93
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