...Gleice...
O cheiro ainda estava lá.
Perfume barato, doce demais, sufocante. Grudado nos lençóis e na minha pele, mesmo depois de horas dirigindo.
Fechei a porta do apartamento com força. Joguei a bolsa no chão e chutei um salto que me machucava desde o meio do caminho. O lugar estava um caos — como sempre. E sinceramente? Eu não me importava.
Passei direto pela pilha de papéis em cima da bancada da cozinha, pelos copos usados, pelas roupas jogadas no sofá. O terno ainda estava pendurado na cadeira, como um corpo abandonado. Tudo ali gritava cansaço. Desinteresse. E talvez um pouco de nojo de mim mesma.
Afundei no sofá, esticando as pernas, sentindo o couro frio contra a pele. Levei dois dedos à ponte do nariz e respirei fundo.
O silêncio me abraçou — áspero, desconfortável.
Mas era melhor que ouvir vozes falsas ou promessas não cumpridas. Negócios resolvidos, mais um contrato assinado, mais um rosto esquecido.
A mulher da noite passada...
Nem lembrava o nome.
Nem me importava.
Tudo nela era exagerado. A risada, o jeito de me tocar, o gosto doce da mentira. Ela queria mais do que eu tinha pra oferecer — como todas. Como sempre.
Mas amanhã... amanhã seria pior.
Amanhã eu teria que encarar o que nem o whisky mais forte apaga.
Marina.
Só de pensar, meu maxilar travava.
A Garota mimada, a favorita da família podre, a arrogante que vivia de costas pro mundo — inclusive pra mim. Ela nunca me olhou com nada além de desprezo, e eu... nunca precisei dela pra nada.
Até agora.
Levantei e fui direto ao quarto. A cama ainda estava bagunçada. Lençol torto, cheiro de outras mulheres. Mas era isso. Era assim que minha vida funcionava. Sem laços. Sem afeto. Só função.
Abri a mala e comecei a jogar as roupas dentro do armário de qualquer jeito. A gaveta das armas fechada. A pasta de contratos trancada. A aliança que meu pai mandou fazer — essa eu ainda não tinha coragem de olhar.
Voltar pra aquela casa seria uma guerra.
E não porque eu odiava a família Gonçalves.
Mas porque estar perto de Marina me lembrava que eu podia sentir.
E eu não queria sentir.
Não por ela.
Estava prestes a acender um cigarro esquecido na gaveta quando o celular vibrou sobre a pia do banheiro.
Número conhecido.
Número irritante.
Atendi sem dizer nada.
Não era o tipo de ligação que merecia “alô”.
— GLEICE! PORRA! Tu vai casar com a gostosa da Marina? — a voz explodiu do outro lado, sem filtro, como sempre.
Fechei os olhos, sentindo uma pontada de dor entre as sobrancelhas.
— Oi pra você também, Caio.
— Tô falando sério, mulher. Que virada, hein? A Gonçalves mimada agora vai usar tua Mulher... olha, se não quiser, eu vou no teu lugar. Aquela bunda merece respeito.
Silêncio.
Um longo e frio silêncio.
Sentei na beira da cama, olhando o chão, o cigarro esquecido na outra mão.
— Você terminou? — minha voz saiu firme, contida, com a raiva fervendo logo abaixo da superfície.
— Ué, só tô dizendo a real! Sempre soube que aquela patricinha escondia fogo, deve tá doida por você...
— Cala a boca, Caio.
Minha mão apertava o celular com força.
Podia sentir os dedos latejar.
— Nossa, tá nervosinha por quê? Tá com medo de se apaixonar? Vai me dizer que nunca pensou...
— Eu disse pra calar a boca.
Silêncio. O tipo de silêncio que nem ele conseguia preencher com idiotices.
Levantei e fui até a janela. A cidade parecia morrer aos poucos sob o céu nublado. Como eu. Como tudo que envolvia essa merda de casamento.
— Marina não é tua piada, Caio. Nem meu prêmio. E se você falar dela de novo desse jeito, eu juro que vou arrancar sua língua com alicate enferrujado. Devagar.
— Tá, tá... caralho. É só uma brincadeira. Você tá tensa. — a voz dele vacilou, mas não me convenceu. Ele nunca soube a hora de parar.
— Marina não é pra você comentar. E nem pra mim...
— minha voz falhou por um segundo. — ...Mas infelizmente vai ser.
Desliguei.
Não esperei resposta.
Joguei o celular no sofá e voltei ao espelho.
A mulher do reflexo estava ali. Cansada. Seca. Armadura por cima de ferida.
As batidas na porta vieram no pior momento.
Eu estava no chão da sala, sentada com um copo de vodca pela metade, encarando o teto como se ele fosse me responder por que merda minha vida tinha virado isso.
Três batidas. Uma pausa.
Ela nunca mudava.
Levantei, larguei o copo no balcão e abri a porta sem dizer nada.
— Boa noite pra você também, Gleice. — disse Beatriz, já entrando com o salto estalando no chão como se fosse dona do apartamento. E de mim.
— Como você soube que eu voltei?
— Não te bloqueei das redes sociais. Diferente de você.
Ela usava um vestido justo demais pra quem só queria “conversar”. O batom vermelho ainda intacto. Cabelo preso com propósito. Um lembrete vivo do caos que ela era.
Um caos que eu já tinha provado — e evitado desde então.
— Só passei pra ver se você ainda existe — disse, andando até o balcão, pegando meu copo sem pedir.
— E?
— Você tá aí. Sozinha. Bebendo. Com cara de quem tá se segurando. — Ela virou o resto da bebida e me encarou. — Não é muito o seu estilo. Ou… talvez seja agora.
Me sentei no braço do sofá, cruzando os braços. Ela se aproximou como uma gata faminta. Um toque no meu joelho, uma mão subindo pela minha coxa.
— Não. — murmurei.
— Gleice… por favor. Uma rapidinha, só pra tirar o atraso. Você tá tensa, eu tô com fogo. Você me deve uma.
— Eu não te devo nada.
Ela riu, baixa. A mão continuou subindo.
— Você nunca soube dizer “não” direito.
Beatriz mordeu o lábio e se abaixou entre minhas pernas, abrindo lentamente minha postura com os joelhos. Eu não impedi.
— Lembra como eu te fazia esquecer tudo?
Minha respiração começou a pesar. Eu odiava isso.
Ela sabia.
Sabia exatamente onde tocar, como provocar, e quando parar de falar.
— Só hoje. Amanhã você pode voltar a odiar o mundo. — sussurrou contra minha pele.
Me deixei levar.
Por raiva. Por fome. Por qualquer coisa que me fizesse parar de pensar em Marina.
Não houve amor, nem carinho.
Apenas a pressa de corpos conhecidos, a dor do prazer mal canalizado, e o gosto de culpa misturado ao perfume exagerado que me sufocava desde o início.
Quando terminou, Beatriz se jogou ao meu lado no sofá, satisfeita demais.
— Ainda sou melhor que qualquer Gonçalves, né? — provocou, rindo.
Me levantei sem responder.
Peguei meu cigarro. Acendi. Fumei em silêncio.
— Veste a roupa e some daqui, Beatriz.
Ela não respondeu de imediato. Só depois de alguns segundos, levantou e foi se arrumar. E antes de sair, ainda lançou.
— Você vai me procurar de novo. Quando ela te quebrar. Como sempre.
Fechei a porta. Tranquei.
Encostei a testa na madeira e fechei os olhos.
O gosto dela ainda estava em mim.
Mas era Marina que estava na minha cabeça.
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Atualizado até capítulo 93
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