Capítulo 4 - Jogo de tabuleiro

Detroit, 9:50

O sino da porta tocou com um leve tilintar quando Eve entrou. Seus óculos escuros ocultavam as olheiras da madrugada e o cansaço disfarçado por um leve sorriso. Estava com o cabelo preso em um coque bagunçado e ainda usava a blusa de moletom.

Lívia já estava sentada na mesa de sempre, de frente para a vitrine dos doces, mexendo no celular. Assim que viu Eve, sorriu com os olhos iluminados e acenou.

— Achei que ia me dar um bolo de novo, eve — disse brincando, puxando a cadeira ao lado.

Eve sorriu de canto e sentou-se, tirando os óculos.

— Nunca te daria um bolo, só... um atraso. A noite foi longa.

— Ah, sim — Lívia riu, fazendo um ar dramático. — A vida de freelancer noturna deve ser bem intensa.

Eve sorriu, mantendo a fachada.

— Freelancer e noturna... você me entende. Muito código, muita cafeína e nada de glamour.

— Glamour eu deixo pra você. Eu que sou só uma aspirante a escritora atendente de cafeteria — disse, apontando para o avental pendurado atrás do balcão.

Eve a olhou com carinho. Lívia era o oposto de tudo o que ela vivia à noite: doce, sonhadora, com um brilho nos olhos que ainda acreditava no mundo. Talvez fosse por isso que Eve gostava tanto dela. E talvez fosse por isso que mentia.

— Ei, o que foi? — Lívia perguntou, percebendo a pausa.

— Nada. Só… gosto de ver alguém que ainda sonha — Eve respondeu, pegando a caneca de café que o garçom deixara na mesa. — É raro.

Lívia riu.

— Você fala como se fosse uma velha de 90 anos. Tem 28, Eve. Ainda dá tempo de sonhar.

Eve desviou o olhar.

— Algumas pessoas não têm esse luxo.

Houve um silêncio breve. Lívia o preencheu mexendo no próprio cappuccino com o dedo, pensativa.

— Às vezes eu queria saber mais sobre você, sabe? Tipo... de verdade. Você sempre fala por cima. E eu te conheço há dois anos e ainda não sei onde você mora direito — disse com um riso nervoso.

Eve ergueu uma sobrancelha.

— Te contei. Zona leste, rua tranquila, prédio feio.

— É. Mas nunca me deixou visitar — retrucou Lívia, rindo. — Você é uma incógnita. Bonita, misteriosa e com uns hematomas suspeitos de vez em quando...

Eve disfarçou uma risada e cruzou as pernas.

— Você tá começando a soar como alguém que vai escrever um livro sobre mim.

— Talvez eu já esteja escrevendo — disse Lívia com uma piscadela.

As duas riram. Mas por dentro, Eve sentia o aperto: a mentira colada à pele, o medo de ver aquele brilho nos olhos de Lívia sumir se ela descobrisse a verdade.

Afinal, a sombra que ela era à noite jamais combinaria com o mundo doce e cheio de esperanças da amiga à sua frente.

E ainda assim… Eve não conseguia se afastar.

---

Lívia terminou o cappuccino e olhou para Eve com aquele mesmo brilho juvenil de sempre. Aquela energia leve que parecia ignorar que o mundo podia ser cruel — e que pessoas como Eve viviam nas bordas desse mundo, tentando não sujar quem estava no centro dele.

— Hoje vou sair com umas amigas da faculdade. A Bia, a Clara e a Júlia. A gente vai naquela casa de show nova que abriu perto da zona sul. Dizem que o DJ é bom e os drinks são ótimos — disse animada, quase saltando na cadeira.

Eve sorriu, mas por dentro já soava um alarme.

Zona sul. Novo lugar. Muita gente. Lugar visado.

— Bem que você podia ir com a gente, né? — Lívia disse com um sorriso esperançoso. — Mas eu nem sei por que pergunto. Já sei que você vai negar.

Eve soltou um riso leve, escondendo o aperto no peito.

— Nem rola, Liv... vou deixar a diversão pra você. Aproveita o bastante por mim.

Lívia bufou fingindo decepção, mas logo sorriu outra vez.

— Então tá. Hoje à noite eu vou dançar até cansar. Vou me divertir muito por você, sombra.

Eve riu, mas desviou o olhar. Sabia que não poderia deixar isso passar.

A voz dela parecia leve, mas cada vez que Lívia falava de sair à noite, Eve sentia o coração acelerar. Porque não era só paranoia — era experiência. Era o que ela sabia sobre a cidade, sobre os becos, sobre quem se escondia atrás de sorrisos e de convites para festas.

— Só... só toma cuidado, tá? — Eve disse baixinho, quase como se não quisesse entregar o medo.

Lívia ergueu uma sobrancelha.

— Ué, cuidado com o quê?

— Ah, sei lá. Gente estranha, bebida aberta... essas coisas. Você é boa demais pra esse mundo, Liv. Só isso.

Lívia riu e balançou a cabeça.

— Você fala como se eu fosse uma garotinha de 15 anos. Relaxa, Eve, eu vou sobreviver.

Eve forçou um sorriso.

— É... só me manda uma mensagem quando chegar lá, e outra quando estiver em casa.

— Certo, mãezona — disse Lívia, debochada, dando um gole final na bebida. — Às vezes acho que você se importa mais comigo do que eu mesma.

Eve apenas olhou para ela, em silêncio.

E se importa. Muito mais. Mas nunca poderá dizer isso.

O movimento tinha diminuído, o sol começava a desaparecer por trás dos prédios, pintando o céu com tons de laranja e dourado. A cafeteria tinha aquele cheiro quente de café recém-passado e canela, enquanto Eve limpava as últimas xícaras e guardava os utensílios com agilidade, mas sem pressa.

Lívia, do outro lado do balcão, olhava o celular e depois se levantou com um pequeno suspiro animado.

— Ai, preciso correr pra casa e me arrumar. O Uber já tá quase chegando — disse ajeitando o cabelo, os olhos brilhando de expectativa.

Eve se virou para ela com um sorriso leve.

— Vai lá, eu fecho aqui. Pode deixar.

— Tem certeza?

— Absoluta. Vai logo antes que se atrase.

Lívia sorriu, pegou a bolsa e, num gesto espontâneo, correu até Eve e deu um beijo rápido em sua bochecha.

— Você é uma amigona, Eve. Um dia ainda vou descobrir porque você não tem um milhão de amigas como eu.

Eve riu, disfarçando o aperto no peito.

— Vai lá, estrela da noite. E me manda mensagem quando chegar, hein?

— Pode deixar! — respondeu Lívia, já saindo apressada pela porta de vidro da cafeteria.

O silêncio se instalou logo depois. Eve terminou de guardar tudo, desligou as luzes e saiu pela porta dos fundos com a chave em mãos. A noite começava a ganhar corpo nas ruas de concreto.

Eve caminhou até sua moto estacionada sob a luz pálida de um poste. Estava prestes a subir quando sentiu o celular vibrar no bolso da jaqueta. Não precisava olhar para saber de quem era. Ela já sentia o frio subindo pela espinha.

O contratante.

Sem tirar o capacete do braço, ela desbloqueou o celular.

Número desconhecido – "Temos um nome. Te espero às 21h. Local já enviado."

Ela não respondeu. Nem sequer clicou para abrir a localização.

O rosto de Lívia piscou em sua mente. Rindo. Leve. Ingênua. Com o mundo ainda nas mãos.

Eve guardou o celular no bolso, calou os próprios pensamentos e montou na moto, engatando a marcha com um movimento rápido. O motor rugiu sob suas mãos como um aviso.

Não era noite para cometer erros.

---

Eve girou a chave na porta já que Lian tinha quebrado sua tranca eletrônica, e entrou no apartamento escuro. Jogou a jaqueta sobre o sofá, acendeu apenas uma luz fraca da cozinha e se encostou no balcão, soltando um suspiro longo.

Seu celular vibrou de novo.

Número desconhecido. De novo.

Ela ergueu uma sobrancelha, já irritada, e atendeu sem nem esperar o toque completo.

— Fale — disse com voz firme e direta.

Uma risada baixa ecoou do outro lado da linha. Inconfundível.

— Nossa... é assim que você fala com seu chefe agora?

Eve sorriu de canto, com sarcasmo evidente.

— Chefe? Achei que era só mais um número estranho na minha agenda. E outra… teu amigo já me ligou. Um trabalho hoje. Às nove. Mal me deixaram respirar.

Lian soltou um suspiro demorado, como quem não estava surpreso.

— Hm… é, ele não perde tempo mesmo. Deve ter te passado o nome do primeiro da lista.

Eve caminhou até a geladeira, pegando uma garrafa de água.

— Passou. Não me deu detalhes. Só o nome e o horário.

— Isso é o bastante por agora. Você vai gostar desse alvo, Eve. Ele é o tipo de escória que a gente não devia deixar respirar.

— Estou começando a achar que esse mundo é mais podre do que eu pensava — disse ela, bebendo um gole.

— É. E por isso você se encaixa nele melhor do que imagina — a voz de Lian era calma, quase hipnótica —, mas comigo, Eve, você pode limpar esse lixo… e ganhar bem por isso.

Eve não respondeu. Olhou para a própria imagem refletida na janela da cozinha. O peso de suas decisões começava a se acumular em silêncios como aquele.

— Nos vemos depois do trabalho? — perguntou Lian, mais suave agora.

— Depende. Se eu não morrer antes.

— Você não vai. — A confiança na voz dele era cortante. — Você é uma sombra, lembra?

Ela desligou sem responder.

Eve jogou o celular na cama e caminhou até o guarda-roupa. Puxou uma caixa escondida no fundo — nela, estavam suas armas, luvas e equipamentos. O peso da pistola em sua mão trouxe a realidade de volta.

Ela tinha um nome para riscar da lista.

Eve, agora vestida com calça preta, coturnos e uma blusa térmica ajustada, sentou-se na ponta da cama com o celular em mãos. O cabelo estava preso em um rabo de cavalo baixo e uma pequena pistola já presa ao lado da cintura.

Discou o número do contratante. O celular chamou por poucos segundos.

— Achei que não ia pegar o trabalho, Sombra — disse a voz masculina do outro lado da linha. Um leve tom de zombaria, como se quisesse provocar.

Eve revirou os olhos, impaciente.

— Nome. E o porquê quer que eu o mate — disse, seca.

Um silêncio rápido. Depois, a voz respondeu mais firme, deixando a brincadeira de lado:

— O nome é Marcelo Gervásio. Italiano, mora nos arredores da cidade, numa cobertura. Usa o nome falso "Marco Delano". É um dos braços direitos do Desmond — o chefão de uma das redes de tráfico humano.

Eve ficou em silêncio por um instante. Já ouvira aquele nome em sussurros — Desmond. O tipo de homem que se esconde atrás de ternos caros e jantares políticos, mas por trás das cortinas, era puro veneno.

— E o motivo? — ela perguntou, apertando o fecho da bota.

— Ele anda mexendo com mercadorias que não são dele. Tentou vender três meninas que eram nossas. Matou uma porque se recusou. Esse tipo de sujeira mancha o nome do grupo. Queremos que ele pague.

Eve apertou o maxilar por um segundo, a expressão endurecendo. Mais uma garota morta.

— Envio a localização exata por mensagem. Câmeras internas e entrada de emergência. Disfarce será necessário. Quer que o corpo suma ou deixo um recado?

— Faça parecer um roubo. Nada que leve até nós. — respondeu o homem. — Depois, venha até o galpão da zona leste. O pagamento será feito em mãos.

Eve desligou sem dizer mais nada.

Eve em sua moto, parada em uma rua escura e silenciosa

O capacete ainda estava em sua cabeça, mas Eve o puxou para cima, revelando os olhos furiosos e a respiração pesada. Ela digitou rápido no celular e colocou no ouvido.

Depois de dois toques, Lian atendeu.

— Fala, Sombra.

— O contratante acabou de me passar o nome, o alvo... e confirmou. Confirmou com todas as letras, Lian — disse ela, a voz baixa, tensa como uma corda prestes a estourar.

Lian ficou em silêncio por um segundo.

— Confirmou o quê?

— Que ele trafica mulheres. Que aquela porra toda da boate é fachada. Que ele matou uma menina porque se recusou a ser vendida. — A voz de Eve agora era mais forte, carregada de desprezo. — Você tinha razão, Lian. O desgraçado me botou pra fazer o trabalho sujo enquanto explorava meninas como se fossem mercadoria.

Do outro lado da linha, Lian soltou um suspiro lento. Ele já sabia, mas ouvir da boca dela tinha outro peso.

— Eu tentei te avisar, Eve... esse tipo de lixo não merece mais do que uma bala bem colocada.

Eve fechou os olhos por um instante, o maxilar travado.

— Eu vou fazer esse serviço, mas não é por ele. É por ela. Pela garota que ele matou. — Ela respirou fundo. — E depois disso... você vai me contar tudo o que sabe. Tudo, Lian. Se tiver mais lixo como esse na cidade, eu vou queimar cada um.

Lian deu um leve riso sombrio do outro lado da linha.

— Sabia que tinha feito a escolha certa.

Desliga sem esperar resposta. O clique seco ecoou no ouvido de Lian. Eve acelera a moto com fúria silenciosa, os olhos fixos no alvo. Agora, era pessoal.

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