O despertador tocou às 7h30 em ponto, como fazia todas as manhãs, seu som estridente cortando o silêncio do quarto de Yudie Beaumont como uma faca afiada. Ele abriu os olhos devagar, encarando o teto branco com rachaduras finas que pareciam veias de uma história antiga, mapeando anos de negligência. A penumbra suave do quarto, iluminada apenas por um fio de luz que escapava pelas cortinas puídas, dava ao ambiente uma sensação de suspensão, como se o mundo lá fora ainda estivesse adormecido. Mas Yudie sabia que, naquela casa, nada jamais dormia de verdade.
As palavras continuavam sussurrando pelas paredes, carregadas de desdém; os olhares continuavam pesando, mesmo na ausência de quem os lançava. Era uma mansão viva, pulsante, mas não com calor humano — com algo mais frio, mais cortante.
Com um suspiro contido, ele se levantou da cama estreita, o colchão rangendo sob seu peso leve. Seus pés descalços tocaram o chão frio, e ele estremeceu, não pelo frio, mas pela familiaridade daquela sensação de isolamento que o acompanhava desde que se entendia por gente.
Ele caminhou até o pequeno banheiro anexo ao quarto, reservado para ele e os empregados, um espaço que cheirava a mofo e produtos de limpeza baratos. A torneira antiga gotejava enquanto ele lavava o rosto com água gelada, o choque térmico não trazendo alívio, apenas um lembrete de que o dia já começava com um peso invisível. Ele escovou os dentes com movimentos mecânicos, penteou os cabelos loiros, quase brancos, com cuidado para não puxar os fios macios, e vestiu uma camisa branca simples e calças azul-marinho que pareciam gritar sua insignificância em comparação com as roupas impecáveis de seu irmão. O espelho, manchado nas bordas, refletiu seus olhos azuis grandes, expressivos, mas com um brilho que parecia se apagar a cada dia, como uma vela consumida pelo vento.
Yudie desceu as escadas com passos leves, quase inaudíveis, como se temesse perturbar o equilíbrio da mansão Beaumont. A casa, com seus lustres de cristal, tapetes persas e quadros de ancestrais que pareciam julgá-lo, era mais um mausoléu do que um lar. Ele conhecia cada degrau, cada rangido da madeira, e ainda assim, sentia-se um intruso. O aroma de café fresco e pão quente o alcançou quando ele se aproximou da sala de jantar, um perfume que deveria trazer conforto, mas que, para ele, era apenas uma promessa vazia de algo que nunca lhe pertenceu.
Na sala, as vozes já ecoavam, familiares e cortantes. Eve Beaumont, sua mãe, estava sentada à cabeceira da longa mesa de mogno, o vestido de seda azul escura reluzindo sob a luz do lustre. Seu rosto, esculpido pela vaidade e anos de privilégio, exibia um sorriso que Yudie raramente via direcionado a ele. Ao lado dela, Robert, seu pai, segurava uma xícara de café com uma mão enquanto folheava o jornal financeiro com a outra, o rosto rígido como pedra. E, no centro da cena, como uma pintura viva, estava Yurie, seu irmão gêmeo, a imagem espelhada de Yudie, mas distorcida por um brilho de arrogância que ele nunca conseguiria imitar. Os mesmos cabelos loiros, os mesmos olhos azuis, mas em Yurie, tudo parecia mais vivo, mais digno de admiração.
Eve: Meu filho, você é a verdadeira joia desta família! — exclamava Eve, a voz melosa, carregada de um afeto que Yudie só conhecia de longe. Ela inclinou a cabeça, os olhos brilhando com orgulho enquanto olhava para Yurie, como se ele fosse a única coisa que valia a pena naquela sala.
Yurie: Não exagera, mamãe — retrucou Yurie, reclinando-se na cadeira com um sorriso preguiçoso, o tipo de sorriso que sabia o efeito que causava. Ele passou a mão pelos cabelos, um gesto calculado, e continuou: — Bem, talvez um pouco. Eu sei que sou um deleite para os olhos. Não é todo dia que se vê essa simetria perfeita.
Robert soltou uma risada grave, o som ecoando pela sala como um trovão baixo. Ele dobrou o jornal com um movimento brusco, os olhos fixos no filho favorito.
Robert: E pensar que você e o outro vieram do mesmo ventre… inacreditável. Um é puro ouro, o outro, ferro velho.
As palavras de Robert cortaram o ar como uma lâmina, e Yudie, parado à porta, sentiu-as como um golpe físico. Ele hesitou, o coração apertado por uma esperança tola que insistia em renascer, mesmo após anos de rejeição. Talvez hoje fosse diferente. Talvez hoje eles o vissem. Ele pigarreou suavemente, forçando um sorriso que não alcançava os olhos, e murmurou:
Yudie: Bom dia.
A reação foi instantânea. Os sorrisos desapareceram, como se uma cortina tivesse sido puxada sobre a cena. Três pares de olhos voltaram-se para ele, carregados de um desdém tão familiar que Yudie já sabia exatamente o que viria. Eve ergueu as sobrancelhas, o rosto contorcido em uma expressão de desgosto, como se a presença dele fosse uma afronta pessoal.
Eve: O que está fazendo aqui? — perguntou ela, a voz fria, como se ele tivesse invadido um espaço sagrado.
Yudie engoliu em seco, a garganta seca apesar do aroma tentador do café.
Yudie: Vim tomar café… — respondeu, a voz tímida, quase um sussurro, como se pedisse permissão para existir.
Yurie foi o primeiro a falar, reclinando-se ainda mais na cadeira, os lábios curvados em um sorriso doce, mas venenoso.
Yurie: Tomar café? Seu lugar não é aqui, irmãozinho! — disse ele, arrastando as palavras com um sarcasmo que fez o estômago de Yudie se contorcer. Ele gesticulou com a mão, um movimento displicente, como se espantasse um inseto.
Robert se levantou, o movimento brusco fazendo a cadeira ranger contra o chão de madeira polida. Seus olhos, duros como aço, fixaram-se em Yudie.
Robert: Você ouviu o que ele disse. Vai para a cozinha. Coma com os empregados, onde pertence.
Eve completou o golpe com um gesto desdenhoso da mão, os anéis brilhando sob a luz.
Eve: Gentinha como você não deve se sentar à mesa conosco — disse ela, cada palavra dita com uma precisão cruel, como se estivesse recitando uma lei imutável.
Yudie hesitou por um segundo, os olhos fixos na mesa farta: croissants dourados, geleias reluzentes, o bule de café fumegante. O cheiro parecia zombar dele, como se dissesse: Você nunca vai me provar. Ele sentiu o coração murchar, uma dor tão familiar que já fazia parte dele, como uma cicatriz antiga que ainda latejava. Sem dizer mais nada, ele deu meia-volta, os ombros curvados, e caminhou para a cozinha, o som dos risos abafados de Yurie ecoando atrás dele como uma perseguição.
Na cozinha, o ambiente era diferente, mais quente, mais vivo. O cheiro de ervas frescas e pão assando preenchia o ar, misturando-se ao vapor que subia de uma panela no fogão. Eulália, a governanta que criara Yudie e Yurie como se fossem seus, estava de pé, mexendo o conteúdo da panela com uma colher de pau. Seu avental azul-claro estava salpicado de farinha, e os cabelos grisalhos, presos em um coque frouxo, brilhavam sob a luz da janela. Ao ver Yudie entrar, ela ergueu o rosto enrugado, os olhos castanhos cheios de uma ternura que ele raramente encontrava em outros lugares.
Eulália: Outra vez? — perguntou ela, a voz suave, mas carregada de uma tristeza que espelhava a dele.
Yudie forçou um sorriso, sentando-se à pequena mesa de madeira no centro da cozinha.
Yudie: Sempre. Eles nunca mudam, Lála.—murmurou, o apelido carinhoso escapando com uma familiaridade que era seu único refúgio. Ele apoiou os cotovelos na mesa, as mãos envolvendo o rosto, como se pudesse esconder a dor que transborda em seus olhos.
Eulália desligou o fogo com um movimento decidido e pegou uma xícara do armário, o som da louça tilintando como uma melodia reconfortante.
Eulália: Senta direito, menino. Te sirvo um café como gente — disse ela, enchendo a xícara com o líquido fumegante. Ela cortou uma fatia generosa de pão fresco, espalhou manteiga com cuidado e colocou o prato na frente dele antes de se sentar ao seu lado, os olhos marejados de compaixão. — Você não merece isso, Yudie.
Ele pegou a xícara, o calor aquecendo suas mãos frias, e olhou para o líquido escuro, vendo seu reflexo distorcido na superfície.
Yudie: Mas aguento — respondeu, a voz baixa, quase inaudível. — Não tenho escolha.
Eulália balançou a cabeça, o cenho franzido com uma mistura de indignação e impotência.
Eulália: Tem sim. Tem um coração bom. E isso ninguém pode tirar de você, nem mesmo aquela mulher amarga — disse ela, referindo-se a Eve com um tom que não escondia seu desprezo. Ela estendeu a mão, tocando o ombro de Yudie com um carinho maternal que ele raramente sentia. — Um dia, meu menino, o mundo vai ver quem você é de verdade.
Yudie sorriu, um sorriso pequeno, mas genuíno, embora seus olhos ainda estivessem perdidos na fumaça do café. Ele queria acreditar nas palavras de Eulália, queria se agarrar à ideia de que havia algo de valor dentro dele, algo que justificasse sua existência. Mas a dor de ser constantemente rejeitado, de ser tratado como uma sombra indesejada, era mais forte. Ele comeu o pão em silêncio, o sabor caseiro sendo o único conforto que encontraria naquela manhã.
Horas depois, na sede da Beaumont Holding, o ar era denso com uma tensão que parecia prestes a explodir. A sala de reuniões, ampla e envidraçada, com paredes de vidro que refletiam a cidade lá fora, era um contraste frio com o caos que se desenrolava dentro. Robert estava sentado à cabeceira de uma longa mesa de mogno, os punhos cerrados sobre a superfície polida. Eve, ao seu lado, mantinha a postura rígida, as mãos cruzadas no colo, mas os olhos brilhando com uma mistura de ansiedade e cálculo. Yudie, como sempre, estava no fundo da sala, de pé, quase invisível, segurando uma prancheta com anotações que ninguém jamais pediria para ver. Yurie, claro, não estava presente — ele nunca se dignava a aparecer em reuniões, e ninguém questionava sua ausência.
O contador, um homem magro de óculos redondos chamado Harold, limpou a garganta, o som ecoando no silêncio opressivo.
— Senhor Beaumont, os números do segundo trimestre… não são bons — disse ele, a voz hesitante, como se temesse a reação que viria.
Robert franziu a testa, o rosto já vermelho antes mesmo de ouvir os detalhes.
Robert: Quão “não bons” estamos falando? — perguntou, a voz grave, carregada de uma ameaça velada.
Harold hesitou, os dedos tremendo enquanto puxava um gráfico na tela projetada na parede. Linhas vermelhas descendentes cortavam o fundo branco, uma acusação silenciosa.
— As dívidas acumuladas ultrapassam a margem de investimento. Se não houver um aporte emergencial nas próximas semanas, a empresa entrará em insolvência.
O silêncio que se seguiu foi tão pesado que parecia esmagar todos na sala. Yudie, no canto, sentiu o ar ficar mais denso, como se o próprio ambiente estivesse prendendo a respiração. Ele observava o pai, notando o modo como as veias em seu pescoço pulsavam, o modo como seus olhos se arregalavam em uma mistura de choque e fúria.
Robert se levantou de súbito, a cadeira raspando contra o chão com um som agudo.
Robert: Isso é ridículo! Impossível! — gritou, a voz ecoando pelas paredes de vidro. Ele bateu as mãos na mesa, os papéis voando como folhas ao vento. — Anos construindo este império, e agora vocês me dizem que está tudo desmoronando? Como deixaram isso acontecer?
Harold engoliu em seco, ajustando os óculos com dedos trêmulos.
— Temos relatórios, senhor. Não houve recuperação após o último escândalo na mídia. Os investidores estão recuando. Precisamos de ajuda externa, e rápida.
Eve olhou para o marido, os olhos arregalados, o rosto pálido sob a maquiagem impecável.
Eve: E agora? O que vamos fazer, Robert? — perguntou, a voz tremendo, mas com um tom que sugeria que ela já estava calculando as próximas jogadas.
Robert levou a mão à testa, os dedos pressionando as têmporas enquanto andava de um lado para o outro, os passos pesados ecoando no chão de mármore. Ele suspirou, um som longo e carregado de desespero.
Robert: Vamos conversar em casa — disse, finalmente, a voz baixa, mas firme. — Isso não pode sair desta sala.
Eve assentiu, os olhos brilhando com algo que Yudie não conseguiu decifrar. Era um olhar que ele conhecia bem — um olhar de quem já estava planejando algo, traçando caminhos que ele não podia prever. Do canto da sala, Yudie observava tudo, o coração apertado por um pressentimento que ele não conseguia nomear. Ele era invisível, como sempre, mas algo naquele momento parecia diferente. Algo estava vindo, algo que mudaria tudo, e ele, sem saber, estava no centro disso.
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Atualizado até capítulo 34
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