Bento
A lua ainda tá alta quando eu pulo a cerca dos fundos e volto pelo mato. Meus pés sabem o caminho de cor. As mãos também. Eu cresci nessa terra. Sei onde rasteja cobra, onde o galho quebra, onde o silêncio muda de tom.
Mas agora é diferente.
Agora eu volto com o cheiro dela grudado em mim.
Rosa.
Ela tem só 17 anos e pergunta demais. Olha demais. Sente demais. E por isso mesmo, é o tipo de pessoa que devia estar bem longe de mim.
Mas... não consigo. Não desde a primeira vez que ela sorriu com aquele dente tortinho e me chamou de “doido bonito”. Desde então, não teve mais jeito.
Só que ela merece mais do que um namorado que aparece só à noite, pula janelas e vive fugindo de perguntas simples.
Ela merece a verdade.
Só que a verdade, no meu caso... tem dente, garra, e uiva.
Eu caminho devagar, voltando pelo mato, desviando dos galhos que conheço de cor. O capim molhado roça nas minhas canelas. O silêncio da noite aqui é mais grosso, mais vivo.
Quando tô sozinho, consigo ouvir tudo. O grilo engasgando na folha. O porco-espinho se coçando perto do galinheiro. Até o coração do mundo batendo de leve, lá embaixo da terra.
Mas mesmo com esse silêncio todo... só uma coisa martela na minha cabeça.
Ela. Rosa.
Com aquele jeito de quem desconfia até do vento. Que fala olhando dentro do olho, como se palavras fossem faca e abraço ao mesmo tempo. Ela me ama — eu sei.
E mesmo assim, toda vez que ela me pergunta "Onde você tava, Bento?", eu minto.
Não é por maldade. É por instinto.
Eu não escolhi ser o que sou. Aconteceu. Veio de longe. De gente que ninguém mais lembra. Meu avô sumia. Meu pai também. E agora sou eu. É como uma maldição... só que com pelos, força e audição aguçada.
Bonito de ver. Horrível de carregar.
Rosa não sabe. E se soubesse... não ia olhar mais pra mim com aquele amor bobo que ela tem no olho. Não depois de ver o que acontece comigo. O que eu sou quando o bicho acorda.
(...)
Chego no sítio. Tá tudo escuro. O cheiro do curral me acalma. É familiar.
Entro na casa devagar, penduro o chapéu na parede e me sento no batente da porta da cozinha. A madeira ainda tá quente do sol do dia.
Pego o retrato velho do meu pai na prateleira. Ele tem meu mesmo sorriso torto. O mesmo olhar de quem guarda o mundo nas costas.
— Ela vai descobrir — falo baixinho. — Do jeito que Rosa é... uma hora ela junta tudo. Vai ver a unha crescida demais, o cheiro no meu pescoço, o jeito que eu sumo sempre.
Aperto o retrato com força.
— E o pior... é que uma parte de mim quer que ela descubra.
Porque esconder quem a gente é... cansa. E amar alguém fingindo ser só metade... é como tentar segurar água com a mão.
Lá fora, um uivo rasga o mato. Não é meu. Tem outros. Sempre tem. A gente se fareja, se entende. Somos uma irmandade.
Eu me levanto. Sinto o sangue vibrando. O corpo aquecendo. Os sentidos mais vivos do que deviam estar.
Tá chegando a hora.
A noite me chama. E eu não sei por quanto tempo ainda conseguirei voltar pra janela da Rosa com o mesmo rosto.
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Atualizado até capítulo 39
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