A Reencarnação da Bruxa

A Reencarnação da Bruxa

CAPÍTULO – 1

Rosa

Já é noite. A casa está em silêncio — meu pai dorme, meus irmãos também. Menos eu. Fico deitada com os olhos bem abertos, feito uma butuca acesa, encarando o teto como se alguma resposta fosse cair dele.

O ventilador range no canto, girando devagar, e Pinguirim inteira parece parada no tempo. Só os grilos ainda estão acordados, tagarelando lá fora.

De repente, ouço:

"toc"

A primeira pedrinha contra a janela. Sempre começa assim. E então, logo depois, a voz dele — sussurrada, baixa, só minha:

— Ô Rosa? Rosa? Tá dormindo?

Sorrio. Pulo da cama no mesmo instante, o coração acelerado de um jeito que nem tento disfarçar. Abro a janela com cuidado.

Ele já está lá.

Como sempre, Bento dá um salto ágil, se segura no batente da janela com uma mão só e se joga pra dentro do quarto como se isso fosse completamente normal.

Cruzo os braços e franzo o cenho.

— Eu ainda acho isso estranho, Bento. Como é que você pula tão certinho na janela? Que eu saiba, você não é ninja...

Ele dá aquele sorriso de canto, ajeita o chapéu de palha na cabeça e se aproxima devagar.

— Você é muito desconfiada, Rosa. Eu só tenho as manhas — responde, me puxando pelos braços e me beijando com um carinho que faz o chão do quarto desaparecer.

Depois do beijo, dou um tapa leve no braço dele.

— E essa fala esquisita? Comeu manga estragada, foi?

Ele sorri de novo, daquele jeito bobo que eu adoro. Mas tem algo nos olhos dele. Algo que não combina com o sorriso.

E eu tento não pensar nisso. Mas cada vez que ele aparece, eu reparo mais.

Eu caminho até a cama e me sento, cruzando as pernas e lançando um olhar que ele já conhece.

— Pra onde você vai durante o dia, Bento? — pergunto, meio de canto, como quem quer parecer casual, mas já armando o cerco. — Você some. E só aparece de noite, igual coruja.

Ele se aproxima, tira o chapéu com aquele jeitinho calmo dele e se senta ao meu lado.

— Eu já falei, Rosa. Eu fico lá pelo sítio mesmo... cuidando das coisas, ué.

Me viro pra ele fazendo minha melhor careta de “não nasci ontem”.

— Mentira. Eu e a Lorraine passamos por lá hoje de tarde. E não vimos nem sinal de você. Nem pegada no barro, nem cheiro de suor, nada.

Ele ri fraco, mas eu vejo o olho dele desviando por meio segundo. Isso já me basta.

— Onde você estava, Bento? Hein? Onde você vai sempre? E por que só vem me ver nesse horário da noite?

Falo tudo de uma vez só, mas sem gritar. Só com aquele tom de quem ama tanto que até a desconfiança sai com carinho.

Ele suspira. Coça a nuca. Me olha.

— Rosa...

Só isso. “Rosa.” Como se esse fosse um argumento.

— Não adianta me chamar assim, não. Não tô brava. Tô curiosa. — Falo, tentando conter o nó na garganta. — Tem coisa que você não me conta. E eu posso aceitar um monte de coisa, Bento... mas segredo demais começa a parecer outra coisa, sabe?

Ele não responde logo. Fica olhando pro chão, mexendo no chapéu entre os dedos. O silêncio pesa um pouco. Não é o silêncio confortável de antes. É o outro. Aquele que guarda o que não se pode dizer.

E aí, ele levanta o olhar. Me encara. Firme.

— Você confia em mim?

E eu congelo. Porque a verdade é que sim. Eu confio. Mas talvez isso seja o que mais me assusta.

Eu encaro ele por um tempo. Longo o suficiente pra ele ficar desconfortável e piscar umas três vezes. Eu vejo o jeito que ele aperta o chapéu nas mãos, e como evita respirar muito fundo. Como se até o ar fosse um risco.

— Confio. — digo, baixinho. — Mas seria mais fácil se você me ajudasse, né?

Ele sorri, mas é um sorriso meio torto. Quase triste. Depois olha pra janela. Lá fora, só a noite. O breu típico de Pinguirim, cheio de grilos, silêncio e mato balançando ao vento.

— Não é que eu não queira te contar, Rosa. É que... eu não posso. Ainda não.

Meus ombros caem. Quase sem querer.

— Sempre tem um ainda, né?

Ele encosta a testa na minha, fechando os olhos por um instante.

— Se eu te contasse agora, você ia fugir de mim. Ou pior, ia tentar entender. E algumas coisas não são pra entender.

— Bento, eu sou praticamente uma especialista em coisas que não fazem sentido. — Murmuro.

Ele ri baixo. Me beija a testa com cuidado.

— Eu sei. E é por isso que eu venho aqui. Toda noite.

Fico quieta por uns segundos. Ele também. O tempo passa lento quando a gente tá nesse silêncio. Mas meu peito não consegue ficar quieto por muito tempo.

— Tá. Mas posso te perguntar só mais uma coisinha?

— Lá vem.

— É sério! Última. Por hoje.

Ele me encara, desconfiado, mas cede.

— Vai.

— Você... tem alguma alergia?

— Alergia?

— Tipo... a alho? Prata? Luz solar? Missa de domingo?

Ele gargalha. De verdade. Daquele jeito que joga a cabeça pra trás.

— Rosa, por que você é assim?

— Porque você é esquisito! E eu sou teimosa. Péssima combinação, né?

— Péssima. — Ele concorda, ainda rindo. — E mesmo assim, não consigo ficar longe de você.

Fico toda derretida por dentro, mas disfarço. Viro o rosto, mas ele já viu.

E antes de eu conseguir inventar outra pergunta esquisita, ele já tá de pé, se aproximando da janela.

— Já vai?

— Se eu ficar muito tempo aqui, sua irmã aparece com uma chinela. E não sei se sobrevivo a isso.

— É... ela tem boa pontaria mesmo.

Ele segura no batente da janela, pronto pra pular. Mas antes, olha pra mim de novo.

— Boa noite, Rosa.

— Boa noite, esquisitinho.

E então ele some na escuridão, igualzinho como chegou.

Fico aqui parada, olhando pra janela aberta e tentando lembrar de tudo que ele disse. De tudo que ele não disse. E de como ele, de algum jeito, ainda cheira a mato molhado e segredo.

Mas eu irei descobrir o que ele esconde.

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