A manhã inteira mergulhada em relatórios, cruzamento de dados e movimentações financeiras suspeitas. Meus olhos já estão latejando, mas não consigo desgrudar da tela.
Algo não bate.
Algumas transações internas passaram quase despercebidas. Pequenas o suficiente para parecerem erro humano. Mas frequentes o bastante para acender um alerta na minha cabeça — e meu instinto raramente falha.
Há sete anos trabalho na Hermes, e se tem uma coisa que aprendi nesse tempo é que grandes problemas se disfarçam de pequenos deslizes. E essas movimentações têm cheiro de sabotagem interna.
Mas sem provas concretas, tudo o que tenho é um palpite — e o histórico de uma empresa onde até a morte do antigo CEO foi um mistério.
Continuo cavando, cruzando acessos, horários e perfis de login, até que ouço batidas suaves na porta entreaberta.
— Entra! — respondo, sem desviar os olhos.
Davi aparece com o celular na mão e aquele sorriso de quem veio me tirar da toca.
— Pronta?
— Pra quê? — pergunto, franzindo a testa.
— Almoço. Com Lorenzo. Ele precisa nos passar algo importante.
— O quê, exatamente?
— Novo projeto. Novo investidor. Aquela coisa básica que pode virar caos em 48 horas.
— Certo, mas antes… você precisa ver isso — digo, girando a tela do meu computador em sua direção.
Ele se aproxima e o semblante descontraído some.
— É o que estou pensando?
— Sim. Alguém está invadindo o nosso sistema. De dentro.
— Isso é gravíssimo, Bruna. A gente precisa comunicar isso a Lorenzo.
— Eu sei. Mas ainda é cedo. Preciso ter certeza. E provas mais sólidas, senão ele vai dizer que estou vendo conspiração onde não tem.
— Como posso ajudar? — pergunta ele, já mais sério.
— Ué, você é o doutor em Ciências da Computação aqui. Me diga você! — rebato com sarcasmo, mas antes que ele possa responder, somos interrompidos.
Um pigarro seco. Preciso de exatamente um segundo para sentir a espinha congelar.
Lorenzo está parado na porta, braços cruzados, expressão impassível.
— O que estão vendo? — pergunta com aquele tom neutro que nunca revela o que realmente está pensando.
Me recomponho na hora. Rápido, disfarço a tela e bato a perna em Davi discretamente. "Ato, agora", diz o chute.
— Algumas planilhas da venda anual de Santa Catarina — respondo, como se fosse a coisa mais entediante do mundo.
— Isso, mas… nada demais! — complementa Davi, tentando parecer relaxado, mas com a mesma expressão de quem escondeu o corpo no porão.
Lorenzo ergue uma sobrancelha, depois olha para o relógio com impaciência.
— Vamos. Tenho pouco tempo para falar com vocês.
— Tinha que ser justo na hora do almoço? — resmunga Davi, já se levantando com má vontade encenada.
— Eu sei, Davi. Ele não tem coração, só pensa em trabalho — digo com a voz doce e irônica, lançando um olhar de falsa compaixão para Lorenzo. — Um dia a gente vai encontrar uma artéria batendo aí, eu acredito.
— Dramas não alimentam ninguém — responde Lorenzo, revirando os olhos. — Se apressem. Ou querem ser demitidos?
— Demitir nada, você não vive sem a gente — retruca Davi, já pegando a pasta como se estivesse numa novela mexicana. — O que seria de você sem sua dupla de ouro?
Lorenzo apenas dá aquele sorriso de canto — o que ele faz quando quer esconder que se diverte com a gente. Ou que está planejando nosso funeral. Nunca dá pra saber com ele.
Seguimos os três para a reunião. Mas minha cabeça permanece nas telas, nos números, nos acessos. Tem algo errado nessa empresa. Algo grande.
E se eu estiver certa, isso vai muito além de uma simples auditoria.
E talvez… muito mais perigoso também.
Seguimos até um restaurante mais afastado da empresa. O trajeto já é estranho por si só — Lorenzo odeia perder tempo, e sair da rota habitual não é do seu feitio. Eu e Davi trocamos olhares cúmplices no caminho, silenciosamente especulando. Alguma coisa vem aí.
Sentamos à mesa e fazemos os pedidos. Eu escolho um prato simples, não porque estou com fome — na verdade, meu estômago está em greve — mas pra disfarçar o nervosismo. Lorenzo mantém-se em silêncio o tempo todo, o que já é um péssimo sinal. Quando o homem cala, é porque o caos está a caminho.
Assim que a garçonete se afasta, ele apoia os cotovelos na mesa e cruza os braços, olhando para nós com aquela expressão que poderia intimidar até um delegado da Polícia Federal.
— Ihhh, chefia… quando coloca essa carranca aí, alguma coisa séria vem! — solta Davi, tentando quebrar o clima.
— Mais trabalho, com certeza. Tá tentando matar a gente mesmo — digo, encostando no encosto da cadeira e cruzando os braços no peito, devolvendo o olhar com desafio.
Lorenzo não sorri. Nem reage. Ele só fala, com a voz firme e gélida o suficiente pra gelar a espinha:
— O que vou falar agora é de extremo sigilo. Se essa informação vazar… não tenho dúvidas de que sairá de um de vocês.
A tensão se instala. Rápida, densa. Um silêncio pesado toma conta da mesa por um segundo inteiro.
— Você sabe que estamos fechados com você, chefe — diz Davi, sério agora, abandonando o tom brincalhão.
— Não ousaria. Tenho princípios, apesar da cara de debochada — completo, erguendo uma sobrancelha. — E uma tendência forte a não confiar em ninguém… então, se eu tô aqui, é porque levo isso a sério.
Lorenzo nos observa por mais um segundo, como se estivesse nos pesando, nos medindo. Ele faz isso às vezes. Como se pudesse ver as rachaduras nas pessoas.
— Pois bem — diz, ajeitando a postura. — Temos um novo associado na Hermes.
Eu e Davi trocamos um olhar rápido.
— Um contrato multimilionário foi fechado. Discreto. Sigiloso. E altamente estratégico. Nenhuma informação pode sair daqui.
— Do que se trata? — pergunto, já sentindo a pulga da curiosidade cavando moradia atrás da minha orelha.
— Não posso dar detalhes. Ainda não. Mas vocês precisam saber que grandes movimentações financeiras vão acontecer nos próximos dias. A princípio, parecerão suspeitas. Até erradas. Mas fazem parte do processo. E eu… preciso que vocês encubram tudo.
Meus olhos se estreitam.
— Encobrir?
— Garantir que não haja interferência externa. Nem interna. Nenhuma auditoria inesperada, nenhum relatório mal interpretado… nada. Quero tudo fluindo como se fosse rotina.
O clima entre nós muda. Davi está sério. Eu estou com o alerta no volume máximo. E Lorenzo… está misterioso. O que, vindo dele, significa que tem algo muito maior por trás.
— E quem é esse novo associado? — pergunto, arriscando mais uma vez.
— Em breve vocês saberão. Por enquanto, quero lealdade e discrição. Posso contar com isso?
— Sempre — diz Davi, rápido.
— Você sabe que sim — respondo. Mas por dentro, algo range. Porque as movimentações suspeitas que vi hoje cedo talvez estejam conectadas a isso. Ou… talvez não. E eu não sei o que é pior.
Olho para Lorenzo, que agora bebe um gole de água com a mesma serenidade de quem acabou de dar um xeque-mate.
E algo me diz… que esse jogo está só começando.
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Atualizado até capítulo 31
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