A nomeação de Liana como chef pessoal do Imperador Theron reverberou pelo palácio como um trovão inesperado. Para muitos, era um ultraje; para outros, uma piada de mau gosto. Para Liana, era um campo de batalha. Seus novos aposentos eram luxuosos, com sedas finas e móveis entalhados, mas o brilho do ouro e a maciez dos tapetes não podiam mascarar a solidão e a hostilidade que a cercavam. As memórias de Elara, de ser uma pária em sua própria casa, misturavam-se com a nova realidade de ser uma intrusa em um ninho de cobras.
A Cozinha Imperial principal era um mundo em si. Um vasto salão com fornos de pedra maciços, bancadas de madeira pesada e uma hierarquia tão rígida quanto a da própria corte. O Mestre Chefe, um homem corpulento de bigodes fartos e olhar desdenhoso chamado Grimald, era a personificação da velha guarda. Ele e seus tenentes, chefs experientes e orgulhosos, observavam Liana com uma mistura de desprezo e curiosidade mal disfarçada.
"Então esta é a 'maravilha' que o Imperador encontrou," Grimald rosnou no primeiro dia de Liana na cozinha, sua voz grave ecoando entre as panelas. "Uma garota que não sabe nem segurar uma faca direito. Não atrapalhe, pirralha. Vá descascar batatas. E não queime a água."
Liana sentiu as bochechas de Elara corarem de vergonha, mas sua mente de chef assumiu o controle. Ela não era uma pirralha. Ela era Liana, a chef que havia conquistado estrelas Michelin. Ela pegou a pilha de batatas, a faca cega e pesada, e começou a trabalhar. Seus movimentos eram lentos e desajeitados no início, mas a memória muscular de anos de prática começou a despertar. Em vez de apenas descascar, ela observava. Observava como os outros chefs preparavam os vegetais, a forma como cortavam a carne, a maneira como temperavam. Era tudo tão... básico. Tão ineficiente.
Os primeiros dias foram uma série de pequenas sabotagens. Um aprendiz "acidentalmente" derramava água quente perto dela, outro "esbarrava" nela enquanto carregava uma bandeja pesada. Facas "escorregavam" de bancadas próximas, e ingredientes importantes "sumiam" de sua área de trabalho. Liana, com sua perspicácia aguçada de chef acostumada a cozinhas de alta pressão, percebeu os truques. Ela desviava, antecipava, e até mesmo, em um momento de puro instinto, conseguiu pegar uma faca que caía antes que atingisse seu pé, surpreendendo o aprendiz que a "deixou cair".
"Ops. Novata," o aprendiz murmurou, com um sorriso de escárnio.
Liana apenas o encarou com um olhar frio, que fez o sorriso dele vacilar. Esses amadores... e eu aqui descascando batatas, ela pensou. Que ironia.
Apesar das humilhações, Liana via a cozinha imperial como um tesouro a ser explorado. À noite, quando todos dormiam, ela se esgueirava de volta. Com uma pequena lanterna, ela examinava os estoques de alimentos: grãos, carnes salgadas, vegetais murchos. Era uma despensa de limitações, mas também de possibilidades. Ela encontrou um pequeno pote de especiarias esquecidas, um moinho manual e até mesmo um pedaço de gengibre seco que ela sabia como reidratar.
Seu foco principal, no entanto, era o Imperador Theron. Ele continuava a enviar seu ajudante pessoal, um jovem e silencioso eunuco chamado Kael, para buscar os "agrados" diários de Liana. Esses pequenos pratos, preparados secretamente com os ingredientes mais humildes e as técnicas mais refinadas que Liana conseguia improvisar, tornaram-se o ponto alto do dia de Theron.
Uma manhã, ela preparou um simples mingau de aveia, mas o infundiu com o gengibre reidratado e um toque de mel que ela encontrou escondido. Theron, que geralmente comia com uma expressão de resignação, fechou os olhos ao provar. O calor picante do gengibre, a doçura suave do mel... era um despertar para seu paladar entorpecido.
"Kael," Theron disse, sua voz mais animada do que o normal. "Diga à chef... que este é o melhor mingau que já provei."
Kael transmitiu a mensagem a Liana com uma reverência, e ela sentiu um calor no peito. Era a primeira vez que alguém, neste mundo, elogiava sua culinária. A semente de uma conexão, tênue mas real, começava a brotar entre a chef e o Imperador.
Enquanto Liana preparava as refeições oficiais para a corte e os "agrados" secretos para Theron, ela começou a usar a cozinha como um observatório. Os serventes, alheios à sua presença, fofocavam sobre os problemas do império. Ela ouvia sobre a escassez de grãos nas províncias do norte, sobre os impostos escorchantes que levavam os camponeses à fome, sobre a corrupção dos oficiais que desviavam suprimentos.
"Outra vez o trigo da fronteira está podre," um servo reclamava, enquanto Liana cortava legumes. "O que eles estão fazendo com nosso ouro? O povo está comendo cascas de árvore!"
Liana olhava para os vegetais murchos que eram entregues à cozinha imperial, para o pão feito com farinha de baixa qualidade. Este repolho murcho... está dizendo muito sobre este império, ela pensou, com uma pontada de tristeza. Sem bons ingredientes, não há bom governo. A comida reflete a alma de um reino.
Ela começou a perceber que a má qualidade dos produtos não era apenas uma questão de falta de conhecimento culinário, mas um sintoma de problemas muito mais profundos. A culinária, que para ela sempre foi uma arte, agora se revelava como uma lente para a verdade social e política.
Uma tarde, enquanto preparava um ensopado para o jantar da corte, Liana notou algo estranho. Um dos cozinheiros, um homem corpulento e de olhar furtivo, estava adicionando um pó esbranquiçado a uma panela de caldo que seria servida a um grupo de nobres. Não era sal, nem tempero. Havia algo de sinistro na forma como ele olhava ao redor antes de despejar a substância.
Seu instinto de chef, treinado para identificar cada ingrediente e cada aroma, disparou um alarme. Ela se aproximou, fingindo pegar algo na prateleira. O cheiro do pó era quase imperceptível, mas havia uma nota amarga e metálica que Liana reconheceu de um documentário sobre venenos históricos que ela assistira.
Veneno? O pensamento a atingiu como um raio. Isso não é rivalidade de cozinha. Isso é conspiração.
Ela agiu rapidamente, sem pensar. "Chefe Grimald!" ela chamou, sua voz surpreendentemente alta e clara. "Este caldo... ele está queimando! Sinto o cheiro de longe!"
Grimald, furioso com a interrupção, correu para a panela. O cozinheiro furtivo congelou, o pó ainda em suas mãos. Liana, com um movimento rápido e imperceptível, esbarrou no braço dele, fazendo o resto do pó cair no chão.
"Sua desastrada!" Grimald rosnou para Liana, mas já estava cheirando o caldo. "Não está queimando, sua tola! O que você fez?"
Liana apenas deu de ombros, com uma inocência forçada. "Meus sentidos são aguçados, Mestre Chefe. Talvez o seu paladar esteja... um pouco cansado hoje."
Grimald rosnou, mas a semente da dúvida fora plantada. Ele ordenou que o caldo fosse descartado e refeito. O cozinheiro furtivo a fuzilou com o olhar, mas Liana o ignorou.
Naquela noite, de volta aos seus aposentos, Liana sentou-se na cama, o coração ainda batendo forte. A culpa de "deveria ter estudado outra coisa" havia desaparecido completamente. Em seu lugar, uma determinação fria e ardente. Este império estava doente, e a doença se manifestava até mesmo na comida. Sua culinária não seria apenas uma forma de sobreviver ou de agradar um Imperador entediado. Seria sua arma. Sua ferramenta de observação. Sua maneira de desvendar os segredos e, talvez, de mudar o gosto amargo daquele mundo.
Eu não sou apenas uma cozinheira, ela pensou, olhando para suas mãos. Eu sou os olhos e os ouvidos que eles não esperam. Este império... ele precisa de um gosto diferente. E eu sou a única que pode dá-lo.
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Atualizado até capítulo 25
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