Encostei no carro, braços cruzados, vendo o movimento de sempre. Bar do Cezinha lotado, cerveja gelada escorrendo da garrafa, churrasquinho estalando na grelha. Riso solto, música baixa, olhar atento. Todo canto da Rocinha tem vida — e olho. Sempre tem alguém vigiando, sempre tem alguém de olho. Até eu.
Mas naquela noite, eu tava de olho nela.
Vi quando desceu da garupa da moto da Larissa. Jeito travado, olhar tentando parecer confiante, mas eu conheço cada micro expressão de quem tá fora do habitat. Caloura. De cara dava pra saber. Cabelo bem escovado, roupa limpa demais, andar certo demais. Mas não era isso que chamava atenção.
Tinha algo no modo que ela olhava o morro, como se tentasse entender, mas sem julgar. Como se quisesse fazer parte, mas ainda sem coragem. E eu tô acostumado com dois tipos de gente que desce aqui de fora: os que vêm olhar de cima… e os que vêm roubar alguma coisa — imagem, história, gente.
Ela não era nenhum dos dois.
Larissa trouxe. E se a Larissa trouxe, tem motivo. Minha irmã é cheia de filtro. Não confia nem em sombra, quanto mais em estudante arrumadinha de Direito.
— Faculdade, hein… — joguei a frase só pra testar. O jeito que ela ia reagir ia dizer mais que qualquer currículo.
Ela não gaguejou. Nem disfarçou medo.
> — Ainda não. Mas tô disposta a descobrir.
Essa frase me pegou no peito. Porque eu vi verdade. Não foi da boca pra fora. Não foi frase feita.
Tinha um tipo de vontade ali. Um tipo de fogo que nem ela devia ter percebido que carrega.
A maioria desvia o olhar. Ela não desviou. Me encarou, queixo firme. Sabe o que é isso? Gente que acha que pode com o mundo. Ou gente que nunca viu o que o mundo faz com você.
A Larissa falou que tava cuidando dela. Não falei nada, só dei dois tapinhas no carro e mandei a real:
> — Fica à vontade, Lívia.
Mas por dentro, minha cabeça já tava mil por hora.
Ajeitei a corrente no pescoço, puxei o cigarro e fiquei vendo ela andar. Até o jeito que andava tinha coisa. Não era de quem sabe onde tá. Mas também não era de quem pede pra ser protegida.
Era de quem quer entender. E isso me assusta mais do que qualquer arma.
Porque gente que quer entender... se envolve. Se mistura. E se perde.
Ela virou o corredor com a Larissa e sumiu do meu campo de visão, mas ficou na minha mente. O nome martelando: Lívia.
Joguei a bituca no chão, calcei com a bota e fiquei ali parado. Meus homens passando com cerveja, o movimento normal do morro rolando, e eu em silêncio.
A Rocinha é meu campo de guerra e minha casa. Conheço cada viela, cada buzina, cada passo.
Mas ela...
Ela parecia coisa de fora. Como se tivesse vindo de um mundo onde ainda existe esperança.
E eu não sei se quero arrancar isso dela… ou proteger aquilo que ela nem sabe que tá trazendo.
O problema é que nesse mundo, esperança morre fácil.
E quando não morre… ela vira culpa.
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Atualizado até capítulo 72
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