— Você sempre vem pra cá depois das aulas? — perguntei, fechando o livro devagar, ainda meio anestesiada pelas mil informações sobre o bendito Direito Constitucional.
Larissa sorriu, mas não com os olhos. O sorriso dela parecia sempre medir o outro.
— Nem sempre. Hoje vim porque senti que alguém ia precisar de uma mão — respondeu, dando de ombros. — E porque não suporto caloura soando artigo como se fosse mantra.
Ri, mais leve. Me ajeitei na cadeira enquanto ela organizava o próprio material. Estava tudo marcado, colorido, anotado. Ela era metódica, do tipo que não se deixa levar por qualquer coisa. Ainda assim, tinha escolhido sentar ao meu lado. E isso dizia muito.
— Você é da cidade mesmo? — perguntei, puxando assunto, tentando entender de onde vinha aquela segurança.
— Sou da Zona Norte. Morro da Rocinha.
Arregalei os olhos, mas me contive. Já ouvira falar daquele lugar. Só que pela boca do meu pai, nos jantares cheios de histórias de operações e traficantes perigosos. Nunca de alguém que falasse dali como se fosse um lar.
— Mas você tá na faculdade... faz mestrado... — soltei, e me arrependi no mesmo segundo.
Larissa não se ofendeu. Só me encarou.
— E daí?
— Nada, desculpa. Só pensei alto. É admirável.
Ela ficou me olhando por mais um segundo, como se decidisse ali se eu merecia a próxima etapa.
— Tá fazendo o quê agora?
— Agora? — olhei o relógio — Acho que vou direto pra casa...
— Não vai mais. Vem comigo. Quero te mostrar um lugar.
— Um lugar?
— É. Não sou de convidar qualquer um. Mas você... tem um olhar curioso. E olha nos olhos quando fala. Gosto disso.
Engoli seco. Não sabia se era convite, teste ou armadilha emocional. Mas alguma coisa em mim queria ir.
— Ok. Vamos.
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A moto de Larissa desceu pelas avenidas e começou a subir o morro como se fosse parte dela. O capacete ainda cheirava a perfume, o mesmo que senti na biblioteca. A cada curva, o cenário mudava: prédios baixos, becos estreitos, roupas penduradas em varais improvisados, crianças correndo descalças com riso alto.
O Morro da Rocinha era vivo. Colorido. Caótico. E estranho de um jeito que não assustava. Me deixava atenta.
Paramos numa rua mais larga, em frente a um pequeno salão de esquina com gente reunida em volta de caixas de som e cheiro de churrasco no ar.
— Esse é o bar do Cezinha. Aqui o pessoal da comunidade relaxa depois do corre. Vem, quero te apresentar minha tia.
Fomos caminhando. As pessoas cumprimentavam Larissa com respeito. Um aceno de cabeça, um sorriso discreto. Ela era conhecida. E eu... claramente não pertencia àquele cenário. Mas ninguém me hostilizou. Só me olhavam com aquela curiosidade silenciosa de quem reconhece algo fora do lugar.
Antes de chegarmos à tal tia, porém, uma presença mudou o ar.
Do outro lado da rua, um homem encostado num carro preto observava tudo em silêncio. Tatuagens no braço, corrente grossa, boné aba curva, olhar cravado em mim.
Larissa percebeu.
— Aquele é meu irmão.
— Ele parece...
— Ele é o que você está pensando.
Fiquei parada por um segundo. O tempo pareceu desacelerar. O olhar dele encontrou o meu, e eu... não desviei.
Foi só um segundo. Mas senti.
Alguma coisa ia mudar.
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Atualizado até capítulo 72
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