O professor falava, e eu tentava acompanhar. Juro que tentava.
Mas era como se as palavras flutuassem no ar e não me encontrassem. Meus olhos percorriam a lousa, a apostila, o caderno... e nada fazia sentido completo. Aquilo não era como os debates da escola. Era técnico, direto, impessoal. E ainda assim, tinha algo naquele mundo jurídico que me puxava.
Na folha da apostila, sublinhei:
"Artigo 5º da Constituição Federal – Todos são iguais perante a lei."
Repeti mentalmente. E de novo. E mais uma vez.
Assim que a aula terminou, em vez de ir embora como a maioria, fui direto pra biblioteca. Precisava entender. Precisava absorver. Tinha que provar, pra mim mesma, que era capaz — sem o sobrenome, sem o pai, sem ninguém me dizendo o que fazer.
A biblioteca era um refúgio silencioso. O som abafado dos passos nos tapetes, o sussurro de páginas virando, o cheiro de papel antigo e ar-condicionado. Me aproximei da seção de Direito e fiquei ali, perdida entre lombadas grossas com nomes que pareciam códigos secretos.
— Artigo 5º… artigo 5º… todos são iguais perante a lei… — murmurava baixinho, os dedos deslizando pelas prateleiras, tentando encontrar o bendito livro que explicasse aquilo de forma clara.
Foi aí que ouvi uma voz firme atrás de mim:
— Você tá recitando a Constituição ou tentando invocar algum espírito jurídico?
Me virei rápido.
Ela tava ali: blusa preta básica, calça jeans escura, mochila jogada no ombro e um olhar tão direto que parecia atravessar a alma. O cabelo escuro preso em um coque bagunçado e os fones pendurados no pescoço diziam "despreocupada", mas a postura... era de quem sabia exatamente onde tava.
— Desculpa, eu… — tentei rir. — Primeira semana. Tô meio perdida.
Ela arqueou uma sobrancelha, mas não zombou.
— Primeira semana todo mundo tá. Mas você parece desesperada. Direito Constitucional?
— Sim. Eu só queria entender melhor esse artigo. O professor citou, mas eu não consegui acompanhar tudo.
Ela estalou a língua, deu dois passos à frente e puxou um livro grosso da estante como se soubesse a localização de cor.
— Aqui. José Afonso da Silva. Vai te dar uma base boa sem te enterrar em juridiquês.
— Obrigada… — sorri, sem saber se era o momento de perguntar o nome.
— Larissa — ela disse antes mesmo de eu perguntar. — Mestranda em Direito Penal. Não mordo, relaxa.
— Lívia. Caloura em tudo.
Ela sorriu de canto, meio surpresa com minha sinceridade.
— Gosto disso. Gente que não tenta fingir que já sabe. Vem, vou te mostrar uma mesa legal pra estudar. Não é perto do ar-condicionado barulhento nem dos que ficam cochichando achando que ninguém ouve.
Enquanto caminhávamos, ela ia apontando seções, citando nomes de autores como quem apresenta o próprio bairro. Larissa tinha algo que me intrigava: era forte sem ser arrogante, gentil sem ser delicada demais. Um equilíbrio raro.
Sentei na cadeira que ela indicou, abri o livro, e antes mesmo de mergulhar na leitura, ouvi a pergunta:
— E aí, caloura... o que te trouxe pra esse caos chamado Direito?
Pensei em dizer a verdade. Em contar do meu pai, da farda, da pressão. Mas ainda não era hora.
— Quero entender como o mundo funciona. E como eu posso mexer nele.
Ela me encarou por um instante, depois assentiu lentamente.
— Boa resposta.
Naquele momento, soube que algo tinha começado.
E, mesmo sem saber o quanto isso ia mexer comigo, aceitei.
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Atualizado até capítulo 72
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