Era fim de tarde, e o céu tinha a cor suja da fumaça que subia dos barris em chamas. O ar estava pesado, denso, como se o próprio tempo sufocasse ali. Um cheiro ácido de plástico queimado misturado a restos orgânicos se espalhava pelo lixão, envolvendo tudo com um gosto metálico.
Helena, caminhava sozinha por uma área mais afastada, onde ninguém costumava vasculhar por medo dos ratos e da lama funda. Mas ela já não tinha medo do que se via. Tinha medo do que podia faltar.
Os irmãos haviam ficado na barraca, empilhando latas amassadas e inventando brincadeiras com gravetos e tampas de garrafa. Helena precisava voltar antes do anoitecer — antes que os gritos dos adultos embriagados tomassem conta da noite.
Revirava entulho com as mãos, o ferro que costumava usar esquecido para trás. Os dedos já tinham calos que não sangravam mais. Vasculhou sacos rasgados, embalagens podres, caixas molhadas. Até que ali, semi-enterrado na lama, encontrou algo inesperado: um saco de arroz.
Estava molhado, mas fechado, ainda aproveitável.
Os olhos de Helena se encheram de uma esperança quase infantil. Um sorriso escapou.
— Posso Cozinhar numa lata — Disse para si mesma.
Ia voltar correndo. Iam comer arroz quente naquela noite.
Mas ao se virar, seu corpo congelou.
Ela não estava mais sozinha.
— Ei, garotinha — disse uma voz áspera, embriagada. Um homem se aproximava, trôpego, os olhos vermelhos, a barba desgrenhada cheia de sujeira. Vestia uma camisa aberta, imunda, e cheirava a álcool e urina.
— Isso aí é meu — continuou ele, apontando para o saco.
Helena recuou um passo, instintivamente protegendo o arroz contra o peito.
— Eu achei. É pra minha família — disse, com firmeza na voz, embora por dentro tremesse.
— Família? — ele gargalhou, cuspindo no chão. — Isso aqui é terra de ninguém, menina. Tudo que tá aqui é de quem tem coragem de pegar. Dá esse saco!
Ele avançou sem aviso.
A mão suja agarrou o braço de Helena com violência. Ela caiu de costas, raspando o joelho nas pedras. O saco de arroz se rasgou, espalhando os grãos na lama como se fossem migalhas de dignidade perdidas.
Ela gritou.
Chutou, se debateu, mordeu o pulso do homem com raiva desesperada. Mas ele era grande. Forte. Cheiro de suor velho e cachaça impregnava sua pele.
E foi então que Helena viu.
Um pedaço de vidro quebrado. Fino. Cortante. Meia ponta de uma garrafa estilhaçada.
Sem pensar, ela o agarrou.
A mão tremia, mas os olhos, não.
— SE ENCOSTAR EM MIM DE NOVO, EU CORTO VOCÊ!
A voz dela não parecia de uma criança. Era grave, gasta, feroz. Uma voz feita de dor e promessas quebradas.
O homem riu, mas parou ao olhar o braço: um corte fino começava a sangrar.
— Maldita... você me cortou!
Helena se levantou de um salto, o caco ainda em punho. Os olhos dela ardiam, acesos como fogo em noite seca.
— Sai daqui! Se encostar em mim de novo, eu grito. E quando eles ouvirem, vão vir pra cima de você. E vão acabar com você como fazem com rato.
A ameaça não vinha da força. Vinha da certeza. Ela acreditava em cada palavra que dizia.
O homem hesitou.
Fungou. Olhou ao redor. Praguejou e cuspiu no chão. Depois, sumiu entre os montes de lixo, como um animal ferido.
Helena permaneceu parada por longos segundos, o peito subindo e descendo em sobressaltos. As pernas tremiam. O corte no joelho ardia. Mas ela não deixou o vidro cair.
Com dificuldade, se ajoelhou e começou a catar grão por grão do arroz espalhado.
Molhado, sujo, mas ainda alimento.
Quando chegou de volta à barraca, já escurecia. Juliano foi o primeiro a correr até ela.
— Helena! Seu joelho tá sangrando! O que aconteceu?
Ela respirou fundo, engolindo o choro.
— Eu consegui arroz — disse com um sorriso, mesmo com os olhos marejados. — Hoje a gente vai comer quente.
Os irmãos vibraram como se fosse Natal.
Ela limpou o arroz com as mãos, deixou a água da chuva ferver num latão enferrujado e dividiu entre eles. Começaram a comer sem esperar esfriar.
Naquela noite, enquanto os irmãos dormiam encolhidos uns aos outros, com as barrigas aquecidas e os corações calmos, Helena ficou acordada.
O caco de vidro, limpo e seco, estava escondido sob o que chamava de travesseiro.
E naquele silêncio espesso, ela fez uma promessa.
“Ninguém mais vai me machucar. Nem a mim. Nem aos meus.”
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Atualizado até capítulo 71
Comments
Celia Aparecida
pobre criança, aprendendo desde de cedo o que é sofrimento
2025-07-21
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