Capitulo Cinco - A Primeira Lâmina...

Era fim de tarde, e o céu tinha a cor suja da fumaça que subia dos barris em chamas. O ar estava pesado, denso, como se o próprio tempo sufocasse ali. Um cheiro ácido de plástico queimado misturado a restos orgânicos se espalhava pelo lixão, envolvendo tudo com um gosto metálico.

Helena, caminhava sozinha por uma área mais afastada, onde ninguém costumava vasculhar por medo dos ratos e da lama funda. Mas ela já não tinha medo do que se via. Tinha medo do que podia faltar.

Os irmãos haviam ficado na barraca, empilhando latas amassadas e inventando brincadeiras com gravetos e tampas de garrafa. Helena precisava voltar antes do anoitecer — antes que os gritos dos adultos embriagados tomassem conta da noite.

Revirava entulho com as mãos, o ferro que costumava usar esquecido para trás. Os dedos já tinham calos que não sangravam mais. Vasculhou sacos rasgados, embalagens podres, caixas molhadas. Até que ali, semi-enterrado na lama, encontrou algo inesperado: um saco de arroz.

Estava molhado, mas fechado, ainda aproveitável.

Os olhos de Helena se encheram de uma esperança quase infantil. Um sorriso escapou.

— Posso Cozinhar numa lata — Disse para si mesma.

Ia voltar correndo. Iam comer arroz quente naquela noite.

Mas ao se virar, seu corpo congelou.

Ela não estava mais sozinha.

— Ei, garotinha — disse uma voz áspera, embriagada. Um homem se aproximava, trôpego, os olhos vermelhos, a barba desgrenhada cheia de sujeira. Vestia uma camisa aberta, imunda, e cheirava a álcool e urina.

— Isso aí é meu — continuou ele, apontando para o saco.

Helena recuou um passo, instintivamente protegendo o arroz contra o peito.

— Eu achei. É pra minha família — disse, com firmeza na voz, embora por dentro tremesse.

— Família? — ele gargalhou, cuspindo no chão. — Isso aqui é terra de ninguém, menina. Tudo que tá aqui é de quem tem coragem de pegar. Dá esse saco!

Ele avançou sem aviso.

A mão suja agarrou o braço de Helena com violência. Ela caiu de costas, raspando o joelho nas pedras. O saco de arroz se rasgou, espalhando os grãos na lama como se fossem migalhas de dignidade perdidas.

Ela gritou.

Chutou, se debateu, mordeu o pulso do homem com raiva desesperada. Mas ele era grande. Forte. Cheiro de suor velho e cachaça impregnava sua pele.

E foi então que Helena viu.

Um pedaço de vidro quebrado. Fino. Cortante. Meia ponta de uma garrafa estilhaçada.

Sem pensar, ela o agarrou.

A mão tremia, mas os olhos, não.

— SE ENCOSTAR EM MIM DE NOVO, EU CORTO VOCÊ!

A voz dela não parecia de uma criança. Era grave, gasta, feroz. Uma voz feita de dor e promessas quebradas.

O homem riu, mas parou ao olhar o braço: um corte fino começava a sangrar.

— Maldita... você me cortou!

Helena se levantou de um salto, o caco ainda em punho. Os olhos dela ardiam, acesos como fogo em noite seca.

— Sai daqui! Se encostar em mim de novo, eu grito. E quando eles ouvirem, vão vir pra cima de você. E vão acabar com você como fazem com rato.

A ameaça não vinha da força. Vinha da certeza. Ela acreditava em cada palavra que dizia.

O homem hesitou.

Fungou. Olhou ao redor. Praguejou e cuspiu no chão. Depois, sumiu entre os montes de lixo, como um animal ferido.

Helena permaneceu parada por longos segundos, o peito subindo e descendo em sobressaltos. As pernas tremiam. O corte no joelho ardia. Mas ela não deixou o vidro cair.

Com dificuldade, se ajoelhou e começou a catar grão por grão do arroz espalhado.

Molhado, sujo, mas ainda alimento.

Quando chegou de volta à barraca, já escurecia. Juliano foi o primeiro a correr até ela.

— Helena! Seu joelho tá sangrando! O que aconteceu?

Ela respirou fundo, engolindo o choro.

— Eu consegui arroz — disse com um sorriso, mesmo com os olhos marejados. — Hoje a gente vai comer quente.

Os irmãos vibraram como se fosse Natal.

Ela limpou o arroz com as mãos, deixou a água da chuva ferver num latão enferrujado e dividiu entre eles. Começaram a comer sem esperar esfriar.

Naquela noite, enquanto os irmãos dormiam encolhidos uns aos outros, com as barrigas aquecidas e os corações calmos, Helena ficou acordada.

O caco de vidro, limpo e seco, estava escondido sob o que chamava de travesseiro.

E naquele silêncio espesso, ela fez uma promessa.

“Ninguém mais vai me machucar. Nem a mim. Nem aos meus.”

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Comments

Celia Aparecida

Celia Aparecida

pobre criança, aprendendo desde de cedo o que é sofrimento

2025-07-21

1

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Capítulos
1 Capítulo Um...
2 Capitulo Dois - O Silêncio do Abandono...
3 Capitulo Três - O menino do farol...
4 Capitulo Quatro - A Dor que Alguém Escolheu Chamar de Amor...
5 Capitulo Cinco - A Primeira Lâmina...
6 Capítulo Seis – Entre a Febre e a Saudade...
7 Capitulo Sete - Um céu cinza e as estrelas de papel...
8 Capitulo Oito - Um jantar, uma amizade de verdade...
9 Capitulo Nove - Portões Fechados
10 Capitulo Dez - O Aniversário de Juliano...
11 Capitulo Onze - A Última Infância
12 Capitulo Doze - A despedida...
13 Capitulo Treze -Dezoito Anos
14 Capítulo Catorze - Reflexos Partidos...
15 Capítulo Quinze – A Oferta Silenciosa...
16 Capitulo Dezesseis - O Café, o Cortiço e a Escolha
17 Capitulo Dezessete - Conhecendo o local..
18 Capitulo Dezoito - A Estreia de Cristal
19 Capitulo Dezenove - Olhares que Queimam...
20 Capítulo Vinte – Um Novo Teto
21 Capítulo Vinte e Um – Novos Começos
22 Capítulo Vinte e Dois – A Joia Mais Cara da Casa...
23 Capítulo Vinte e Três – Olhos de Vidro, Corpo de Fogo...
24 Capítulo Capitulo Vinte e Quatro – A Dança Queimava Por Dentro
25 Capitulo Vinte e Cinco - O Preço da Promessa...
26 Capítulo Vinte e seis– A Noite em Que Morri Pela Primeira Vez
27 Capítulo Vinte e sete – O Preço de Ser Desejada
28 Capítulo Vinte e oito – Corações em Guerra...
29 Capítulo Vinte e Nove – O Lugar de Uma Mulher Como Eu...
30 Capítulo Trinta – O Vazio Depois do Fogo...
31 Capítulo Trinta e um– A Última Noite...
32 Capítulo Trinta e dois – O Sim Que Não Era Dela...
33 Capítulo Trinta e quatro - Noite no Cortiço...
34 Capitulo Trinta e Cinco - A Descoberta...
35 Capitulo Trinta e Seis - Tudo por Amor...
36 Capitulo trinta e sete - O Primeiro Passo...
37 Capítulo Trinta e Nove – O Preço do Teto...
38 Capítulo Quarenta – A Linha que Não Queria Cruzar...
39 Capítulo Quarenta e um - O Preço da Esperança...
40 Capitulo Quarenta e dois - Heitor observa Helena em segredo...
41 Capítulo Quarenta e três– Rastros na Poeira...
42 Capitulo Quarenta e quatro - Heitor no cabaré, observando Cristal...
43 Capitulo Quarenta e cinco – Entre Espelhos e Feridas...
44 Capítulo Quarenta e seis– Silêncios Aconchegantes...
45 Capítulo Quarenta e sete – O Presságio de Dona Joana
46 Capitulo Quarenta e Oito -A Proposta do Advogado...
47 Capítulo Quarenta e nove – O Encontro com o Homem Misterioso...
48 Capítulo Cinquenta – Um contrato com destino...
49 Capítulo Cinquenta e Um– A Última Noite de Cristal...
50 Capítulo Cinquenta e dois– Escolhas Silenciosas...
51 Capítulo Cinquenta e três – O contrato e a despedida...
52 Capítulo Cinquenta e quatro– A Chegada à Mansão...
53 Capitulo Cinquenta e cinco - A biblioteca e o primeiro jantar...
54 Capitulo Cinquenta e seis - A despedida no corredor e o choro da noite...
55 Capitulo Cinquenta e sete - A manhã seguinte...
56 Capitulo cinquenta e oito - O casamento...
57 Capítulo Cinquenta e nove- A casa dos sonhos...
58 Capítulo Sessenta - A grande notícia...
59 Capítulo Sessenta e um -Deixando tudo para trás...
60 Capitulo Sessenta e Dois - O novo Lar...
61 Capitulo Sessenta e Três - A mudança...
62 Capítulo Sessenta e Quatro - Noite de pipoca e a foto da mãe...
63 Capítulo Sessenta e Cinco - O grande dia na nova vida...
64 Capítulo Sessenta e Seis - De volta para a mansão Monteiro...
65 Capítulo Sessenta e Sete - Os preparativos...
66 Capítulo Sessenta e Oito - A entrada triunfal...
67 Capítulo Sessenta e Nove - Os monteiros...
68 Capítulo Setenta - O Passado à Porta...
69 Capítulo Setenta e um - Entre Olhares e Silêncios...
70 Capítulo Setenta e dois - Dividindo o mesmo quarto...
71 Capítulo Setenta e três -Posições no Tabuleiro...
Capítulos

Atualizado até capítulo 71

1
Capítulo Um...
2
Capitulo Dois - O Silêncio do Abandono...
3
Capitulo Três - O menino do farol...
4
Capitulo Quatro - A Dor que Alguém Escolheu Chamar de Amor...
5
Capitulo Cinco - A Primeira Lâmina...
6
Capítulo Seis – Entre a Febre e a Saudade...
7
Capitulo Sete - Um céu cinza e as estrelas de papel...
8
Capitulo Oito - Um jantar, uma amizade de verdade...
9
Capitulo Nove - Portões Fechados
10
Capitulo Dez - O Aniversário de Juliano...
11
Capitulo Onze - A Última Infância
12
Capitulo Doze - A despedida...
13
Capitulo Treze -Dezoito Anos
14
Capítulo Catorze - Reflexos Partidos...
15
Capítulo Quinze – A Oferta Silenciosa...
16
Capitulo Dezesseis - O Café, o Cortiço e a Escolha
17
Capitulo Dezessete - Conhecendo o local..
18
Capitulo Dezoito - A Estreia de Cristal
19
Capitulo Dezenove - Olhares que Queimam...
20
Capítulo Vinte – Um Novo Teto
21
Capítulo Vinte e Um – Novos Começos
22
Capítulo Vinte e Dois – A Joia Mais Cara da Casa...
23
Capítulo Vinte e Três – Olhos de Vidro, Corpo de Fogo...
24
Capítulo Capitulo Vinte e Quatro – A Dança Queimava Por Dentro
25
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Capítulo Vinte e seis– A Noite em Que Morri Pela Primeira Vez
27
Capítulo Vinte e sete – O Preço de Ser Desejada
28
Capítulo Vinte e oito – Corações em Guerra...
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Capítulo Trinta – O Vazio Depois do Fogo...
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