No Passado,
Era uma madrugada fria e úmida, daquelas em que o vento parece sussurrar segredos que ninguém quer ouvir. A lona puída que servia de teto balançava levemente com o sopro da brisa, e sob ela, quatro pequenos corpos dormiam encolhidos, protegendo-se do mundo como podiam.
Victoria permaneceu em pé por um longo tempo, observando os filhos sob a luz fraca de um poste distante. Usava um casaco surrado e os cabelos estavam presos às pressas. Ao lado do pé, repousava um saco de lixo preto — dentro, suas roupas, seus poucos pertences, e junto a eles, a decisão mais cruel que já tomara.
Aproximou-se de cada um devagar. Keven, com os lábios entreabertos, dormia agarrado ao cobertor furado. Juliano ressonava baixinho, os braços jogados para fora, com uma bolacha quebrada ainda na mão. Lara, encolhida contra Helena, apertava um boneco sem um dos braços. E Helena... mesmo dormindo, franzia a testa, como se pressentisse a tragédia que se aproximava.
Victoria se ajoelhou ao lado da filha mais velha. Uma lágrima grossa desceu por seu rosto sujo de poeira e cansaço. Tocou com a ponta dos dedos os cabelos de Helena, sem ousar um carinho inteiro. O medo de acordá-la era menor que a covardia de encará-la.
— Me perdoa, minha menina... — sussurrou, num fio de voz que se perdeu no vento.
Ela se levantou devagar, pegou o saco, olhou uma última vez para os filhos — seus filhos — e virou as costas. Saiu sem fazer barulho, como uma sombra. Atravessou o lixão com passos vacilantes, desviando de montes de lixo e restos queimados. A cada passo, o peso da culpa apertava mais o peito, mas ela não olhou para trás. Não podia. Sabia que, se o fizesse, não teria forças para continuar.
Desapareceu na escuridão como quem nunca existiu.
A manhã chegou envolta por nuvens cinzentas. O céu parecia carregar o mesmo luto que Helena sentiria minutos depois.
O choro de Lara rompeu o silêncio abafado da barraca. Um som agudo, desesperado. Helena abriu os olhos, ainda sonolenta, e viu a irmã menor sentada, esfregando os olhinhos, com o rosto sujo de lágrimas.
Juliano, com apenas oito anos, remexia o bolso tentando encontrar algo para distraí-la. Estendeu uma bolacha seca, quebradiça.
— Cadê a mamãe? — perguntou Keven, os olhos grandes, azuis e assustados. Com o carinho sem rodas apertando contra o peito, como um escudo.
Helena se sentou devagar. Seus olhos percorreram a barraca.
O cobertor da mãe... não estava ali.
A sacola com os mantimentos... havia sumido.
A caixa de madeira, onde guardavam suas moedas... vazia.
O estômago de Helena deu um nó. Ela se levantou num salto, o coração batendo alto nos ouvidos. Saiu correndo pela trilha de barro, os pés descalços afundando no chão molhado. Chegou até o ponto de ônibus perto da cerca de arame. O banco estava vazio. Um homem dormia mais adiante, embrulhado em papelão, mas não vira ninguém.
— Moça... a senhora que tava com três crianças? Sumiu de noite. Pegou um ônibus — disse uma senhora, mexendo em sacos de latinha. — Nem olhou pra trás.
Helena não disse nada. Apenas sentiu o chão ceder.
Voltou em passos lentos, cada passo mais pesado que o outro. Juliano, Lara e Keven a esperavam, sentados como filhotes perdidos.
— Ela... ela não vai voltar? — perguntou Juliano, tentando parecer forte, mas a voz falhava.
Helena olhou para ele, e pela primeira vez, sentiu-se arrancada da infância.
— Não. Agora sou eu que cuido de vocês.
Naquela noite, todos dormiram colados ao corpo dela. Lara sobre seu peito, os meninos um de cada lado. Do lado de fora, o mundo era hostil e escuro, mas ali dentro, a menina de dez anos aprendeu o que era ser mãe, irmã, pai, tudo ao mesmo tempo.
E quando finalmente o silêncio caiu de novo, Helena abriu os olhos e encarou o teto de lona. A respiração estava presa na garganta. O abandono tinha gosto de ferro na boca, e a dor — a dor era funda demais para ser chorada.
Ela não sabia como faria.
Mas faria.
Porque agora ela era o último abrigo deles.
Helena, Juliano, Keven e lara.
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Atualizado até capítulo 70
Comments
Dorameira
Concordo, muitas crianças sofrem isso, é muito triste.
2025-07-20
0
Thaliaa Vieira
Coisas triste 😔 realidade de muitas crianças
2025-07-13
0
Celia Aparecida
meu Deus esse destino, é muito triste
2025-07-21
0