Heitor havia viajado com a família. Ninguém avisou por quanto tempo. Ninguém explicou. O carro preto deixou de aparecer, e o mundo de Helena voltou a ser só lixo, silêncio e sobrevivência.
O cheiro era insuportável.
Um misto de plástico queimado, restos de comida apodrecida, roupas molhadas e carniça esquecida pelo tempo. Era como se o próprio ar estivesse doente ali. Moscas se acumulavam sobre as latas abertas, ratos corriam entre as sacolas rasgadas, e um líquido espesso e escuro escorria por entre os montes como um rio envenenado.
Era ali que Helena garimpava o que podia.
Com uma vara de ferro mais alta que ela, revirava montanhas de lixo como se buscasse ouro — mas tudo o que queria era qualquer coisa que pudesse ser mastigada. Cada saco aberto era uma roleta russa: podia vir um pedaço de pão mofado ou uma agulha enferrujada. Ela não tinha escolha. A fome não esperava.
— Juliano! Achei um pedaço de pão! — gritou, com a voz embargada e alegre, como se tivesse encontrado um tesouro escondido sob a lama.
Juliano correu. Magro, os joelhos machucados, as costelas saltando por baixo da camiseta suja. Mas os olhos brilhavam de expectativa.
— Tá duro... mas dá pra molhar com água quente... — disse, animado, pegando o pão com as duas mãos sujas.
— A gente não tem gás — lembrou Iago, coçando a cabeça com os dedos encardidos. — Só a água da chuva...
Helena deu de ombros e fingiu que não se importava. Rasgou o pão com esforço — estava endurecido como pedra, mas ela o dividiu em cinco partes irregulares. Uma para cada um.
— Come, Lara. Come, Keven. A mana já comeu — disse, com doçura nos lábios rachados.
Mentiu. E ninguém notou.
Os irmãos devoraram seus pedaços com a velocidade de quem sabe que talvez aquilo seja tudo por hoje. Mastigavam devagar, mesmo com pressa, saboreando o sabor quase inexistente como se fosse banquete. Helena apenas os observava. Os olhos cheios de amor e de vazio ao mesmo tempo.
Quando terminou de distribuir tudo, Helena se afastou em silêncio. Caminhou até a carcaça de um carro velho, com portas arrancadas e assento coberto de lodo, onde costumava se esconder para respirar.
Sentou-se no chão frio e deixou o ferro cair ao lado.
O estômago roncava.
Cada contração era como uma mão apertando suas entranhas. Mas ela não chorava por isso. Chorava porque não podia fazer mais. Porque seu corpo de menina não era o bastante para sustentar quatro vidas. Porque a promessa de uma casa bonita parecia, naquele momento, uma invenção de outro mundo.
As lágrimas desciam devagar, silenciosas, traçando caminhos por entre a poeira do rosto.
Ela tapou a boca com a mão para não soluçar alto. Lá fora, os irmãos riam entre si, dividindo migalhas, brincando de esconder pedras como se fossem brinquedos. O som da inocência era uma faca cortando o peito dela.
Ficar sem comer doía.
Mas ver os irmãos comendo, mesmo com tão pouco, doía mais bonito.
Porque era amor. Cru, impuro, desesperado. Mas amor.
Ali, entre ratos e ferrugem, Helena entendeu que sobreviver não era um ato de sorte.
Era um ato de coragem.
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Atualizado até capítulo 70
Comments
Thaliaa Vieira
Podendo separar a comida ou o pão que não quer mais, colocar numa sacola e deixar pendurada na grade, assim quem passar e pegar , não precisa ficar revirando o lixo, e ter um pouco de dignidade pra comer
2025-07-13
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Thaliaa Vieira
E lendo, ou até mesmo vendo com os olhos, a realidade de muitas pessoas e crianças! Quando a gente fala que não quer mais alguma coisa, e não pensa duas vezes antes de jogar fora, e não pensar na realidade do outro.
2025-07-13
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