Dois dias sem comer.
O estômago de Helena já não doía. Estava vazio demais até para isso. O frio e a fraqueza colavam nela como segunda pele. Keven, encolhido no canto da lona, dormia de olhos entreabertos, abraçado ao um boneco mutilado. Lara mal chorava — só soluçava baixinho, num lamento resignado. Juliano, com os lábios rachados, apenas a observava, esperando por uma decisão.
Helena sabia o que precisava fazer.
Prendeu os cabelos com um pedaço de barbante encontrado no lixo. Vestiu a camiseta que, embora furada e manchada, ainda cobria o tronco magro. Amarrou o short com um nó firme, para não escorregar. Pegou Lara, de três anos, no colo — a mais nova do grupo, deixada por outra mãe que sumira tempos antes — e puxou Juliano pela mão.
O céu estava coberto de nuvens cinzas quando saíram.
A caminhada até o semáforo era longa, passando por terrenos baldios, lixeiras tombadas, barracos improvisados e olhares indiferentes. Mas Helena tinha um destino: o cruzamento onde os carros ricos paravam por alguns segundos antes de desaparecerem para sempre.
— Moço, uma moeda? Um pão? — repetia, com a voz rouca, os olhos baixos. Não tinha coragem de encarar ninguém.
Alguns fingiam que ela não existia. Outros fechavam o vidro com pressa, como se o toque da pobreza contaminasse. Teve um que gritou “sai da frente, pestinha!” e acelerou antes que o farol abrisse.
Helena engoliu o orgulho junto com a fome.
Juliano, ao lado, mantinha Lara nos braços, e juntos tentavam manter-se de pé. O tempo passava. A esperança murchava.
Foi então que um carro preto e brilhante parou na linha branca. Os vidros eram escuros. O motor fazia um ronco grave. Helena hesitou. Já esperava a mesma frieza de sempre.
Mas o vidro começou a descer.
Do outro lado, um menino.
Doze anos, talvez. Cabelos castanhos bem penteados, uniforme impecável de colégio particular. Ele olhou diretamente para ela. Não com pena. Não com repulsa.
Com curiosidade.
— Você tá com fome? — perguntou, com uma voz clara e segura.
Helena piscou, surpresa. Firmou os pés no chão e respondeu com firmeza, como se recitasse um juramento:
— Eu e meus irmãos. Sempre. — respondeu, com firmeza.
O menino abriu a lancheira. Pegou um sanduíche embrulhado e, com as próprias mãos, dividiu em quatro pedaços. Estendeu o lanche pela janela com um sorriso discreto.
— Toma. Divide com eles. — disse, estendendo o lanche pela janela.
Helena hesitou por um momento, mas depois pegou o sanduíche com cuidado. Seus dedos sujos tocaram os dele por um instante. Era como se aquele breve contato trouxesse uma faísca de esperança. Havia migalhas de pão em seus olhos enquanto ela sussurrou um simples "Obrigada".
— Qual o seu nome? — ele perguntou.
— Helena.
— O meu é Heitor. Você vem aqui sempre? — perguntou Heitor, curvando-se um pouco para mais perto da janela, seus olhos brilhando com curiosidade.
— Às vezes — Helena respondeu, admirando a pureza daquele menino que não parecia se importar com o que os outros pensavam.
O farol abriu, mas o carro não andou de imediato. O motorista olhou para trás pelo retrovisor, depois para o menino, e esperou.
Na manhã seguinte, ele voltou.
E no outro dia também.
Não falava muito no começo. Apenas entregava sacolas com frutas, pães, às vezes brinquedos usados, roupas pequenas demais para ele. Helena esperava sem saber se ele realmente viria — e se surpreendia toda vez que o via descer do carro e caminhar até ela.
Com o tempo, Heitor começou a ficar.
Sentava no meio-fio com Juliano e ensinava truques com bolinhas de papel. Dava lápis de cor para Lara e elogiava cada desenho que ela fazia, mesmo os mais tortos. Trazia cobertores velhos, meias coloridas, biscoitos, e às vezes ficava ali, só ouvindo Helena contar sobre os dias, a saudade da mãe, o medo das noites frias.
Helena não sabia explicar o que era aquilo. Por que um menino rico perderia tempo com ela? Não entendia. Não confiava. Mas aos poucos, começou a esperar. Esperar o som do motor. Esperar o sorriso gentil. Esperar por alguém que a via de verdade.
Heitor - Criança
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 75
Comments
Thaliaa Vieira
As vezes a criança consegue ser mais madura que um adulto
2025-07-13
2