O sol já estava alto quando desci para o escritório antigo do meu avô. Havia pilhas de pastas empoeiradas, cadernos de anotações amareladas e uma caixa com contas acumuladas dos últimos meses.
Sentei-me à escrivaninha de madeira maciça e comecei a organizar os papéis. Enquanto separava os contratos, percebi que muitas anotações eram feitas à mão, sem registro formal. Tudo administrado à moda antiga.
Suspirei.
Era mais grave do que eu imaginava.
Peguei minha pasta, abri meu notebook e comecei a montar um plano simples de reestruturação. Os salários dos peões, os custos com alimentação, as dívidas da seca do último ano... Tudo precisava ser reavaliado. A fazenda ainda tinha valor, mas estava mal gerida.
Foi então que ouvi passos decididos se aproximando.
Nem precisei olhar para saber.
— A gente não precisa de planilha pra cuidar da terra. — disse Alessandro, com a voz baixa, porém firme.
Levantei os olhos.
Ele estava encostado na porta, braços cruzados, com a camisa levemente suada e o semblante mais fechado do que na noite anterior.
— E você continua chegando sem bater — retruquei, voltando o olhar para a tela.
— Isso aqui sempre foi minha rotina. Agora tem alguém mexendo em tudo, e eu não fui avisado.
— Estou apenas tentando entender o que está acontecendo com a fazenda. — respondi, mantendo o tom calmo. — E sinceramente, Alessandro, tem muita coisa errada.
— Eu dou conta.
— Não, você não dá. — levantei da cadeira, segurando uma das pastas. — Os gastos com ração estão acima do razoável, o curral tem vazamentos, os cavalos estão sem ferrageamento regular e... os funcionários têm salários atrasados.
Ele me encarou por alguns segundos, a mandíbula tensa.
— Você sumiu por dez anos. Agora volta e quer dizer como tudo deve funcionar?
— Eu fui embora porque vi você com outra. — minha voz saiu cortante, mais alta do que eu pretendia.
Silêncio.
Os olhos dele se cravaram nos meus. Um abismo entre nós.
— E você nunca me deu chance de explicar. — ele respondeu, mais baixo. — Só fugiu.
— Porque doeu. Doeu mais do que qualquer coisa que eu já tinha sentido.
— E você acha que em mim não doeu também?
Fiquei em silêncio. Não esperava que ele admitisse. Não esperava nada. E talvez por isso, cada palavra dele me atingia como tiro certeiro.
Ele respirou fundo, se aproximando um pouco.
— Eu sei que fiz muita coisa errada... mas você viu um momento, Manuela. Um só. E tomou sua decisão.
— E você não me procurou. — sussurrei, engolindo a raiva e o nó na garganta. — Você deixou por isso mesmo.
— Você tinha ido embora. Mudado de número, de cidade, de país. Eu sou só um cowboy, Manuela. Você virou uma estrela.
— Não me romantiza agora. — dei um passo para trás. — A verdade é que foi mais fácil deixar pra lá do que enfrentar.
Ele deu um leve sorriso, mas era amargo.
— E agora? Tá pronta pra enfrentar?
Não respondi.
Não sabia a resposta.
O ar entre nós ficou denso. O silêncio não era confortável. Era cheio de coisas não ditas. De mágoas antigas. De saudade camuflada.
— Vou continuar trabalhando aqui — avisei, voltando à pasta. — Meus avós precisam de mim. E essa fazenda também.
— Só não se esqueça que esse lugar tem regras.
Levantei o olhar.
— E talvez esteja na hora de mudar algumas delas.
Ele assentiu devagar, virou-se e saiu, batendo a porta com um estalo seco.
Fiquei ali, com os olhos cravados na madeira da porta fechada. Sentindo o peito apertado, os dedos tremendo e uma raiva que misturava com... desejo?
Não.
Aquilo era o passado falando. Só podia ser.
🌾🌾🌾🌾
Mais tarde, depois de passar a manhã entre papéis e registros, fui até o campo conversar com dois peões antigos da fazenda. Um deles, Tião, me recebeu com um sorriso cansado.
— Menina Manuela... fazia tempo que a gente não via esse lugar com ar de esperança.
— Espero poder fazer alguma diferença, Tião.
— Já fez. Só de ter voltado.
Conversei com eles sobre a necessidade de reorganizar as tarefas, pensar em novos fornecedores, buscar ajuda com máquinas mais modernas. Eles pareciam receptivos — cansados, mas esperançosos.
A tarde estava quente quando retornei para o casarão. Na varanda, encontrei minha avó com uma carta nas mãos. O rosto sério.
— O que houve? — perguntei, sentando ao lado dela.
— Uma notificação do banco. Se a gente não quitar parte da dívida da última safra, vamos ter problemas com o campo de soja.
— Eu posso cuidar disso. Deixa comigo.
Ela me olhou com aquele olhar de quem vê além.
— Eu sei que você pode. Só cuida do seu coração também. A terra exige muito, mas o coração exige mais.
Fiquei em silêncio, olhando o campo ao longe.
O céu já começava a se tingir de laranja.
E, mesmo com a brisa quente acariciando meu rosto, um arrepio percorreu minha espinha.
Algo me dizia que aquela conversa com Alessandro...
Foi só o começo.
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Atualizado até capítulo 45
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Fatima Gonçalves
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2025-07-23
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