Acordei com o som dos galos e o cheiro de café fresco vindo da cozinha.
Não era o barulho dos carros, nem os passos apressados no corredor de um prédio comercial em Manhattan. Era algo mais sereno. Quase familiar. O tipo de som que faz a alma lembrar de onde veio.
Levantei devagar, com o sol invadindo pelas frestas da janela. O quarto de hóspedes onde eu costumava dormir na adolescência estava quase igual. A colcha de retalhos feita pela minha avó, a moldura de madeira envelhecida no espelho, até as almofadas bordadas com meu nome ainda estavam ali.
Como se, em algum lugar do coração deles, eles soubessem que eu voltaria.
Depois de um banho rápido, coloquei uma calça jeans e uma camisa branca leve. Prendi o cabelo em um rabo de cavalo e desci.
Na cozinha, dona Célia estava de avental, tirando uma fornada de pãezinhos do forno.
— Bom dia, Menina Manuela! — ela disse com um sorriso que aquecia até os ossos. — Tá cheirando café e saudade aqui.
— Tá cheirando infância. — respondi, sentando à mesa. — E saudade, com certeza.
Ela colocou uma xícara na minha frente e encheu com aquele café forte que só ela sabia fazer.
— Seus avós dormiram bem. O doutor passou cedo e disse que o quadro tá estável. Mas é bom que você esteja aqui. Eles precisam de você mais do que nunca.
— Eu vou ajudar no que for preciso, Célia. — dei um gole no café. — A fazenda tá com problemas, não tá?
Ela olhou para mim com um semblante sério.
— Tá, minha filha. A seca do ano passado prejudicou muito as plantações. Os custos subiram, as vendas caíram... Alessandro tem feito o impossível pra manter tudo funcionando, mas sozinho é difícil.
— Por que vocês não me avisaram antes?
— Porque seus avós têm orgulho. E achavam que era errado te chamar no meio da sua vida. Mas eu... eu sabia que você era a única que podia pôr essa casa de volta nos trilhos.
Terminei o café em silêncio. O peso da responsabilidade começava a tomar forma. Mas eu queria — mais do que isso, eu precisava — me reconectar com aquele lugar.
— Vou dar uma volta pela fazenda. Quero ver com meus próprios olhos.
— Vai, sim. Mas leva o chapéu. O sol hoje veio com vontade.
Sorri e aceitei o velho chapéu que ela me entregou, o mesmo que usei por anos nos treinos de equitação.
Lá fora, o dia estava claro, o ar seco e o vento leve. Caminhei pelos corredores de terra batida, ouvindo o som dos cascos no chão ao longe. O cheiro de feno, madeira e animais era forte, mas acolhedor. O estábulo ainda estava de pé, pintado com cuidado, as baias limpas.
Um potro novo relinchou ao me ver. Me aproximei devagar, acariciando sua testa. Ele encostou o focinho na minha mão como se me conhecesse.
— Ei, garotão... também sente que esse lugar tem alma? — murmurei.
Continuei andando. O celeiro, o curral, a sombra do carvalho no alto da colina… tudo parecia igual. E, ao mesmo tempo, diferente. Como se o tempo tivesse deixado suas marcas sem apagar os traços antigos.
Foi quando cheguei perto do galpão de armazenamento que algo me chamou a atenção.
Pegadas.
Pegadas pequenas de bota feminina. Não eram de Lisa — eu saberia. E também não eram minhas. Estavam frescas na terra batida, indo em direção ao celeiro antigo. O mesmo celeiro da última lembrança que eu queria esquecer.
Meu corpo enrijeceu. O ar ficou mais denso.
Segui as marcas até a porta lateral. Estava entreaberta. Espiei com cuidado, mas não havia ninguém lá dentro. Apenas o cheiro de madeira envelhecida, feno seco e memórias mal curadas.
Fiquei ali por alguns minutos, respirando. Tentando entender por que, mesmo depois de tanto tempo, aquele lugar ainda mexia tanto comigo.
Voltei para o casarão com o coração acelerado.
Na varanda, encontrei minha avó sentada em sua cadeira de balanço, lendo o mesmo livro de capa gasta que ela carregava desde que me entendo por gente.
— Posso sentar com você?
— Sempre pode. — ela respondeu, com um sorriso tranquilo.
Sentei ao lado dela, debaixo da sombra. O vento fazia a cortina balançar levemente atrás de nós.
— Eu caminhei por tudo. A fazenda ainda é linda, vó. Mas cansada.
— Como a gente. — ela disse, com um leve riso. — Mas ainda de pé. E cheia de histórias pra contar.
— Célia me contou sobre os problemas. Eu posso ajudar. Tenho contatos, posso olhar os números, ver onde dá pra reestruturar.
— Isso é bom. A fazenda precisa de alguém com visão, mas também com coração. E você tem os dois.
Ficamos em silêncio por um momento, olhando o campo se estender até onde a vista alcançava.
— Vó... a Vitória ainda vive por aqui?
Ela fechou o livro devagar.
— Mora a duas fazendas daqui. Nunca se afastou muito. E nunca escondeu o que queria.
— E Alessandro?
— Alessandro nunca olhou pra ela como olhou pra você. E talvez seja isso que ela nunca perdoou.
Meu peito pesou.
— Eu encontrei pegadas hoje. Perto do celeiro.
— Então ela ainda ronda. Como uma sombra teimosa. Mas, Manuela… — minha avó me encarou com aquele olhar direto que sempre me desmontava — o passado só tem poder se a gente o carrega nas costas. Você não é mais aquela menina.
— Eu sei.
— Então não deixe que ela te faça voltar a ser. Nem por dor, nem por medo. Você é uma mulher agora. E está aqui. Isso já muda tudo.
Assenti em silêncio, segurando a mão dela.
E naquele momento, olhando o campo à nossa frente, percebi que, mesmo sem saber, Vitória nunca tinha ido embora.
E talvez... eu também não.
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Atualizado até capítulo 45
Comments
Fatima Gonçalves
TEM QUEE CORTAR A CABEÇA DA SERPENTE
2025-07-23
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