Jogo de Aparências

O sol ainda nem havia nascido quando Isabela abriu os olhos. Dormira pouco, entre soluços contidos e pensamentos agitados, mas a decisão estava tomada. O coração ainda doía, o orgulho ferido queimava como sal em ferida aberta, mas ela sabia o que tinha que fazer. Jogar para perder não era uma opção. Levantou-se com um único pensamento: Davi seria dela. Ponto final.

No espelho, o rosto inchado pelas lágrimas da noite anterior parecia mais frágil do que de costume, mas ela ignorou. Tomou um banho demorado, escolheu uma roupa leve e sofisticada — calça branca de alfaiataria, cropped de seda azul claro, sandálias douradas e óculos escuros enormes que cobriam metade do rosto. A maquiagem foi discreta, o cabelo preso em um coque despojado. Tudo planejado. Queria parecer segura, leve, natural. Queria parecer a mulher que Davi escolheria para passar o resto da vida, não a garota mimada e escandalosa da noite anterior.

Desceu as escadas com passos firmes, ignorando os olhares dos pais na sala. Nem um bom-dia. Pegou as chaves do carro e saiu sem olhar para trás.

A rua ainda estava vazia quando estacionou em frente ao prédio de Camila. Tocou o interfone e esperou. A amiga atendeu com a voz sonolenta, e Isabela respondeu com um tom urgente:

— Desce. Preciso falar com você agora. É sério.

Minutos depois, Camila surgiu com um moletom largo, cabelo preso de qualquer jeito, e uma cara que misturava tédio com curiosidade.

— Tá cedo, Isa. Se você não tiver fugido de casa, essa visita é exagerada.

Isabela abriu um sorriso contido, quase irônico.

— Fugi da ingenuidade. E vim te contar meu plano.

Camila arqueou uma sobrancelha, desconfiada.

— Plano? Pra quê?

— Pra fazer o Davi ficar comigo no Leblon.

Camila cruzou os braços, encostada no portão.

— Você não vai fingir que gosta do mundo dele, né? Porque depois que casar, o divórcio vem voando...

— Claro que não, amiga. Eu jamais fingiria uma coisa dessas. Não nasci pra viver na favela, nem pra fingir que aceito aquilo. Meu plano é perfeito. Simples e eficaz. Assim que ele estiver comigo, ele vai entender que comigo aqui, ao lado dele, ele não vai precisar voltar pra aquele morro. Vai passar tudo pro pai de novo. Vai ver que pode ser empresário, que pode ter sucesso longe do crime. Vamos ter uma vida tranquila. Como eu mereço.

Camila suspirou, olhando para a amiga como quem observa alguém andando na beira do abismo.

— Isa... você tá certa disso?

— Camila, eu amo o Davi. Mas não gosto daquele morro. E mais: eu não vou criar raízes em favela. Jamais. Meu lugar é aqui. No Leblon. Com gente civilizada, com vida social, com eventos, viagens, conforto. Eu já aceitei que meus pais não vão me apoiar. Eles ameaçaram me deserdar se eu continuar tentando mudar ele. Então, que seja. Eu não conto com eles. Vou resolver do meu jeito.

— E o Davi? Você acha mesmo que ele vai abrir mão da identidade dele assim?

Isabela caminhou até o carro, abriu a porta, mas virou-se antes de entrar. Seus olhos brilhavam, não de ternura, mas de obstinação.

— Ele vai. Vai porque me ama. Vai porque eu sou o futuro dele. Eu sou a mulher da vida dele. Ele só precisa enxergar isso com clareza. E quando estiver comigo aqui, vivendo essa realidade, não vai querer mais sair.

Camila hesitou.

— Então... você vai forçar uma aproximação?

Isabela assentiu, firme.

— Vou. A gente vai se encontrar de novo. Vou fazer ele se lembrar do quanto me ama. Vou seduzir, vou encantar, vou envolver. E quando ele estiver completamente rendido, eu proponho o plano. Digo que ele pode passar os negócios pro pai e vir ser meu sócio. Ele tem cabeça pra isso. É bom com números, tem carisma, sabe se portar. Vai ser questão de tempo pra ele ver que o morro não precisa mais dele.

Camila ainda olhava com dúvida, mas conhecia a amiga o suficiente pra saber que, quando decidia alguma coisa, ninguém conseguia pará-la.

— Então anda logo com esse plano, Isa. Porque se demorar, você perde ele de vez. O Davi pode ser apaixonado, mas não é cego. Se perceber que você quer moldar ele pra caber no teu mundo, ele te larga.

— Eu não vou perder, Camila. Eu não jogo pra perder. O Davi vai ficar comigo. Pra sempre.

Entrou no carro e acelerou, o coração batendo forte, não de emoção, mas de determinação. Pela primeira vez em muito tempo, Isabela sentia que tinha um controle real sobre as coisas. Sabia que não podia mudar o passado, nem o lugar de onde veio, mas podia sim decidir o futuro. E no futuro dela, Davi Lucca não estava no morro. Estava no Leblon, ao lado dela, vestindo terno, falando de investimentos e sendo o homem perfeito que ela idealizava desde os tempos de infância.

Ela dirigiu até a orla e estacionou de frente pro mar. O vento balançava os fios do coque frouxo, e os olhos dela varriam o horizonte como se procurassem certezas. Ela se lembrou das vezes em que Davi dizia que não se via em outro lugar além da comunidade, do orgulho que ele tinha do povo dele, da história dele, da missão que dizia carregar como herdeiro do Morro do Azul. Mas pra ela, tudo isso era apenas romantismo de quem nunca conheceu o verdadeiro sabor da estabilidade.

Abriu a bolsa e pegou um caderno pequeno. Começou a rabiscar ideias. Esboçou como faria o reencontro parecer casual. Um jantar. Uma visita ao trabalho dele. Talvez um evento beneficente. Algo que despertasse nele o desejo de reaproximação. Sabia que não podia pressionar, que precisava jogar com delicadeza. Envolvê-lo. Seduzi-lo. Convencê-lo de que a vida com ela seria leve, segura, próspera. Livre do peso que o morro colocava nos ombros dele.

O celular vibrou com uma mensagem.

Camila: “Certeza que não tá indo longe demais?”

Isabela digitou rápido.

Isa: “Certeza que tô fazendo o certo.”

Apagou a mensagem antes de enviar. Não queria parecer insegura. Guardou o celular, olhou o mar mais uma vez e murmurou pra si mesma:

— Eu vou mudar a história dele. Ele vai ser o que nasceu pra ser. Um homem de verdade. Um homem de sucesso. Comigo.

Voltou pro carro, deu partida e seguiu direto pra loja onde ele costumava resolver as finanças da firma. Não ia abordá-lo naquele dia. Ainda não. Só queria observar. Ver se o brilho nos olhos dele ainda era o mesmo ao falar dela. Queria encontrar o ponto fraco. O momento exato em que ele se lembrasse da paixão, da conexão, da ideia de um futuro juntos.

O plano havia começado.

E na cabeça de Isabela, já era questão de tempo até ele abandonar o morro

e se tornar

o marido perfeito.

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Comments

Cida Mendes

Cida Mendes

Ele é mais pé no chão do que ela sabe de onde veio tem orgulho de ser quem é e de onde veio ninguém muda ninguém,o Amor ❤️ é livre é compreensivo, constrói histórias ela vai perder ele até entender que estatus e dinheiro não define ninguém tem gente que presisa perder e sofrer pra dá valor ao que tem,as vezes não tem como ter de volta, ela vai aprender da maneira mais difícil.

2025-07-12

2

Susana Amor

Susana Amor

até parece que ele vai abandonar o morro, pra ficar com essa patricinha metida

2025-07-11

0

Diana Oliver🌻

Diana Oliver🌻

Ela não combina nada Com ele 😬

2025-07-11

1

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