Coração de Comando

O entardecer chegava silencioso sobre o Complexo da Maré. As vielas, normalmente cheias de vida e vozes, estavam mais calmas naquela hora — talvez respeitando o momento, talvez só esperando o sol se pôr pra retomar o ritmo frenético que só quem vive ali conhece. Mas, dentro da casa da família Torentto, o clima estava mais carregado do que o céu de tempestade.

Davi Lucca, agora conhecido por muitos como Sombrio, andava de um lado para o outro na sala, os pensamentos explodindo dentro da cabeça como granadas. Tinha o maxilar travado, as mãos inquietas, o coração pesado.

Carolina, sentada no sofá com os óculos na ponta do nariz, observava o filho entre uma página e outra de um livro. O silêncio dele falava alto. Era o tipo de silêncio que mãe nenhuma ignora. Ela dobrou a página discretamente, fechou o livro, e tirou os óculos com cuidado.

— Filho... cê tá andando que nem alma penada. Senta aqui e fala com a tua mãe.

Davi parou. Respirou fundo. Sentou-se ao lado dela, os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos.

— Mãe... tô com um nó aqui no peito.

— É a Isabela, né?

Ele assentiu.

— Amo ela desde moleque. Sempre amei. Mas... acho que a gente não tem futuro. Ela não quer me aceitar como eu sou, não quer essa vida, não quer a Maré. Não quer vir aqui, na casa onde eu cresci. Tem nojo do morro, mãe.

Carolina o olhou com serenidade, mesmo com a dor evidente nos olhos.

— Mas ela conhece tua família, meu filho...

— Conhece, sim. A senhora é tia dela. Mas ela nunca pisou aqui. Diz que morro é coisa de bandido, que não vai se misturar com criminoso. Eu tentei de tudo, mãe. Tentei mostrar meu mundo, tentei conciliar. Mas ela quer me mudar. Quer que eu viva só no Leblon, que assuma a empresa e esqueça o resto.

— Sabe o que mais me espanta? — disse Carolina, se ajeitando no sofá. — É que a Beatriz, tua tia, nunca foi preconceituosa. Muito menos a tia Letícia. Agora, a Isabela... parece que virou as costas pra tudo. E olha só: o pai dela é o Vitinho. Aquele mesmo que foi sub do Alemão por anos. Ele não esconde isso. Continua indo no morro, conversa com todo mundo, e tá como empresário hoje só pra dar um futuro melhor pra eles. Até o irmão dela, o Gustavo, tá lá com o Fumaça, ajudando no comando. Só ela... que se perdeu no luxo e esqueceu a origem.

Davi balançou a cabeça, frustrado.

— Isso que me machuca. A gente tem história, mas ela tá tentando apagar tudo. Como se ser da favela fosse doença.

Do outro lado da casa, Maria Luiza — a Malu — assobiava uma melodia baixa enquanto cuidava da cozinha. A calda de frutas vermelhas borbulhava, perfumando o ar. Era a doçura encarnada. Tinha herdado da mãe não só a aparência calma, mas também o dom de fazer comidinhas que curavam alma. O cheesecake já ganhava forma na geladeira.

De repente, a porta da frente se abriu, e Leandro Torentto, o Tenebroso, entrou. Mesmo sem farda ou arma, ele preenchia o ambiente com respeito. Era daqueles que impunham presença no silêncio, com o peso da história que carregava.

Parou na entrada da sala, observando os dois por um instante.

— Tava ouvindo lá fora... é sobre a Isabela, né?

Davi se levantou. O pai chegou mais perto. Eles se abraçaram. Forte. Verdadeiro.

— Pai... eu tomei minha decisão. Eu vou assumir. Vou ser o Sombrio. A Maré é minha casa. E se a Isabela não consegue aceitar isso, então a gente não vai continuar. Não tem como.

Leandro assentiu.

— Filho, escuta aqui... Cê não precisa seguir meus passos pra me orgulhar. Se quiser viver no asfalto, se quiser sumir desse mundo e só tocar empresa, tudo certo. Eu vou te apoiar. O que importa pra mim é tua felicidade.

— Mas a minha felicidade tá aqui. No morro. Na minha origem. No povo que confia em mim. Eu sou o Sombrio, pai. De corpo e alma. E se o amor da Isa for de verdade... ela vai seguir comigo. Se não, paciência. O que não dá é pra me perder tentando agradar alguém que não respeita de onde eu vim.

Carolina limpou uma lágrima discreta. Leandro sorriu, orgulhoso.

Nesse instante, uma voz debochada surgiu no corredor.

— Óóó... que lindo. Cena de novela. Todo mundo se abraçando enquanto a Arlequina aqui fica de escanteio.

Maria Eduarda, a outra gêmea, apareceu encostada na parede, de braços cruzados, vestida com um moletom colorido e um brilho nos olhos que misturava ciúmes e fogo.

— Pô, Davi... por que tu não vai viver com a patricinha no Leblon e larga esse bagulho de comando pra mim, hein? Eu sou tua irmã, sangue do Tenebroso também. Cês vivem me deixando de fora.

Davi riu.

— Duda... tu ainda tem muito chão pra andar.

Leandro fez um gesto com a mão, cortando o papo com suavidade.

— Cê pode ser a Arlequina, minha filha. Mas o comando tem peso. Responsabilidade. Estratégia. Tu é impulsiva demais ainda. Mas se quiser ajudar, pode ser sub do teu irmão. Aprende com ele. Caminha junto. E quando tua hora chegar... cê vai saber.

Mas Maria Eduarda não gostou. Cruzou os braços com mais força, o maxilar travado.

— Ah, claro... Davi sempre o favorito, né? Sempre o “herdeiro”. Cês nem enxergam tudo que eu faço!

— Duda... — começou Carolina, tentando acalmar.

— Deixa, mãe! Deixa que um dia eles vão ver. Eu sou mais do que tão deixando eu ser. Mais do que a sombra do meu irmão!

Ela saiu batendo o pé, a porta do quarto fechando com um estalo seco.

Carolina suspirou e olhou pra Leandro.

— Deixa ela. Com o tempo, ela entende. O que essa menina tem de explosiva, tem de coração bom.

Do outro lado da casa, a cozinha foi invadida por um cheiro doce e quente.

— Alguém aí quer cheesecake ou vou ter que comer tudo sozinha? — gritou Malu, rindo.

Carolina levantou com um sorriso.

— Minha menina... tu tá seguindo direitinho os meus passos. Mas do teu jeito. E isso me dá orgulho que não cabe no peito.

Elas se abraçaram. Davi chegou por trás e abraçou as duas também.

Leandro se aproximou e colocou a mão no ombro do filho.

— Cês tão vendo isso aqui? Isso é base. Isso é raiz. Isso é o que nenhum castelo no Leblon compra.

E ali, no meio daquela cozinha simples, entre cheiro de cheesecake, lágrimas mal contidas e promessas de poder, nasceu algo novo.

A era do Sombrio.

E ele não vinha sozinho.

Davi Lucca

Isabela

Maria Eduarda

Maria Luiza

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Comments

Cida Mendes

Cida Mendes

É isso aí Davi lindo ❤️ segue seu caminho com orgulho de onde veio e de quem você é,deixa ela quebrar a cara e vim arrependida, ninguém muda ninguém

2025-07-12

1

Mclaudia Oliveira

Mclaudia Oliveira

Infelizmente têm muitas isabelas por aí, esquecendo de onde veio 😡😤

2025-07-13

0

Lena carvalho

Lena carvalho

Isabela tem o sangue ruim do vô ksks

2025-07-13

0

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