BASTIDORES

(Luzes do palco se apagam. A vinheta some. O letreiro do Price News gira até desaparecer. Silêncio nos bastidores — só o som dos saltos apressados de Val batendo no chão de cimento frio.)

Voz em off (Valentina):

— Eu sempre sonhei com o palco.

Mas ninguém te conta que, quando ele apaga, sobra só você…

…e um salto que machuca mais que ex.

(Val entra no camarim. Bate a porta com força. Tira os saltos e joga num canto, ainda bufando. Solta o microfone, arranca os cílios postiços com a fúria de quem tira dívida do nome.)

Val (resmungando sozinha):

— Caceta... que programa puxado.

O coach do B.O. quase me fez perder a paciência de nascença.

(Ela se senta num pufe rosa-bebê, destoando do resto do camarim cinza. Encarando o espelho — sobrancelha levantada, olheira gritando, sorrisinho torto.)

Val (pensando alto):

— “Você fala demais”, diziam.

— “Ninguém vai levar a sério uma menina dessas.”

— “Jornalismo não é pra você.”

(Pega um lenço de farmácia. Cada passada apaga um pedaço da Val do palco… e revela a Valentina da rua de barro e do brigadeiro no pote de margarina.)

Val (olhando pro espelho, com ironia):

— Pois é, Brasil.

A menina que falava demais agora tá ao vivo.

Falando. Demais.

(Ela dá uma risadinha de canto. Meio orgulhosa. Meio esgotada.)

(A porta se abre de supetão. Entra Léo, o assistente de som, com o crachá torto e o cabelo igual ao áudio que ele testa: cheio de interferência.)

Léo:

— E aí, Val! Entrevista do século, hein?

O cara quase virou fumaça no meio do palco!

Val (tirando o brinco, sem olhar pra ele):

— Léo, se aquele homem é coach, eu sou um iPhone desbloqueado em 12x no boleto.

(Entra Dandara, produtora. Camisa amarrotada, sempre com cara de “me dá só cinco minutos de paz”.)

Dandara:

— Eu avisei que ele era esquisito.

Na reunião, o homem pediu pro Wi-Fi “vibrar numa frequência mais positiva”.

Val:

— Vibração positiva é o nome da cinta que eu tava usando pra fingir que não jantei feijoada ontem.

(Os três caem na risada. Val levanta, descalça, só de meias, andando pelo camarim com a naturalidade de quem já perdeu a vergonha e achou outra no lugar.)

Val:

— Falo mesmo.

Essa maquiagem de palco pesa mais que a fatura do meu cartão.

Tô exausta. Mas tô viva.

(Pega uma marmita no frigobar, senta no chão e começa a comer com garfo de plástico.)

Léo:

— Tu ainda come no chão, Val?

Val:

— Claro, porra.

Quem nasceu sentada na calçada não se acostuma com poltrona de couro fake.

Dandara:

— Sabia que tu ia meter essa hoje.

A plateia te ovulou forte.

Na internet, tão te chamando de "a Oprah do Capão".

Val (de boca cheia):

— Capão, Brasil, Marte... pode vir.

Só não me pede pra dar bom dia com voz doce.

Aqui é: bom dia, me dá meu café e cala a boca.

(Ela se deita no carpete com a marmita no colo, cabelo solto, finalmente relaxada. O brilho do palco cede lugar à luz fria e crua do camarim.)

Val (sincera, cansada, mas com alma):

— Eu amo isso aqui.

Mesmo com as merdas, os perrengues, o roteiro que ninguém segue.

Eu amo.

— Porque toda vez que eu sento naquela bancada improvisada, olho pra câmera e falo do jeito que ninguém deixa...

…é como se eu gritasse por mim, pela minha mãe, por todo mundo que calaram.

(As luzes do camarim diminuem. Val sozinha. Marmita vazia ao lado. O espelho embaçado pelo tempo — e pela luta.)

Voz em off (Val, mais contida, profunda):

— As pessoas dizem que querem verdade.

Mas não querem.

Elas querem espetáculo.

— Querem o brilho, não o suor.

A lágrima encenada, não a dor de verdade.

O discurso editado, com filtro, trilha sonora… e dancinha no final.

(Imagens do palco passam no telão: Val de salto, maquiada, microfone em punho. Depois, Val descalça, cansada, comendo no chão do camarim.)

— Ser real assusta.

Ser real dá trabalho.

[Respira fundo.]

— E, cá entre nós...

ninguém paga ingresso pra ver o bastidor.

— Quando a mulher é forte, chamam de louca.

Quando fala alto, é barraqueira.

Quando não sorri, é amarga.

— Mas se ela se cala...

…ninguém pergunta se ela tá bem.

(Val encara a câmera — não como apresentadora. Mas como Valentina. Humana. Entre os cacos e as luzes.)

— Sabe o que cansa?

Não é só o palco.

É ter que escolher entre agradar e ser você.

Entre ser amada… ou ser livre.

(Ela limpa a última maquiagem do rosto.)

— E eu me pergunto, às vezes:

— Quanto vale se vender?

— Quanto vale caber num molde que não é seu?

— Quanto vale subir no palco... se pra isso, cê tem que deixar a sua alma no camarim?

(A luz vai se apagando aos poucos. Fica só a voz.)

— Mas quer saber?

— Se for pra perder a essência...

…eu prefiro seguir pobre.

Mas de salto.

— Porque tem coisa que nem aplauso compra.

(Tela preta. Letreiro final aparece, branco e firme:

“No fundo, ninguém quer ver gente de verdade. Querem o teatro, não a vida.

E eu?

Cansei de fingir que sou personagem.”

— VALENTINA, ex-cobaia do sistema. Agora dona do palco.

Continua...

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