Durante a madrugada, a chuva caía fina, quase imperceptível. Mas dentro da mansão Oliveira, cada gota parecia um tambor batendo no telhado, ecoando uma verdade que há muito tentavam enterrar.
Eduarda estava acordada.
Sentada no chão do closet, o testamento da mãe ao seu lado, ela revia os documentos, a carta, os papéis antigos — como se os olhos pudessem encontrar o que o coração ainda não queria aceitar.
Mas não era nos documentos que a resposta estava.
Era no silêncio entre as palavras.
Havia uma inconsistência na linha do tempo. O testamento tinha sido datado em março de 2004. A mãe morreu em maio. Mas num dos recibos de transferência anexados, havia uma quantia alta sendo enviada para uma “Clínica São Rafael”, em nome de um certo Dr. Jonas P. Leme — em abril.
Abril.
Antes da morte.
Mas dois dias depois da briga que ela lembrava ter ouvido — aquela que terminara em silêncio e portas trancadas.
Eduarda conhecia esse nome.
Não da clínica — mas da adolescência.
O Dr. Jonas havia sido o responsável pela primeira “avaliação psiquiátrica” que a diagnosticara como “emocionalmente instável”. A mesma justificativa que a família usava até hoje para desqualificar qualquer reação sua.
Seu coração acelerou.
A verdade podia estar nesse homem. Ou ao menos, um fio puxando tudo.
Na manhã seguinte, Eduarda fingiu dores de cabeça. Recusou o café. Disse que precisava ficar no quarto escuro, sozinha. Ana Cláudia aceitou sem discutir — achava mais seguro quando ela se recolhia.
Mas Eduarda estava trabalhando.
Destravou o celular escondido e vasculhou cada menção pública da clínica. Encontrou um site antigo, quase inativo, mas com uma aba de “contato profissional”.
Ali, entre títulos de publicações sobre “tratamento de jovens herdeiros com traumas de elite”, um endereço em São Sebastião, a poucos quilômetros da cidade.
O nome “Dr. Jonas P. Leme” estava lá. E ao lado, uma frase que gelou o estômago:
"Experiência com avaliações de estado civil, heranças e perícias judiciais de incapacidade.”
Incapacidade.
A palavra que enterrava sua liberdade.
Foi essa a arma usada contra ela.
No final da tarde, enquanto fingia repousar, um envelope pardo foi empurrado sob a porta do quarto. Nenhuma batida. Nenhum ruído.
Ela olhou ao redor, desconfiada. Pegou o envelope.
Lá dentro, um papel com poucas palavras, escritas à mão:
"Você nunca esteve louca. Sua mãe descobriu tudo. E pagou por isso.
Alguém dentro da casa ainda está com você. Use a escada antiga da estufa. Lá, ninguém vê."
Eduarda ficou paralisada.
A letra não era de Bianca.
Era firme, angulosa. Masculina.
Ricardo?
À noite, com a casa escurecida, Eduarda esperou o horário de sempre.
Vestiu-se em silêncio, calçando tênis macios, prendeu o cabelo em um lenço escuro e saiu pelo corredor dos fundos. O coração batia tão forte que parecia o único som no mundo.
A estufa da mansão era pouco usada. Fica nos fundos do terreno, coberta por vidro e heras antigas, mas acessível por uma trilha lateral. Quase ninguém ia lá — desde que, anos atrás, uma empregada caiu da escada de manutenção e o local foi “interditado”.
Eduarda chegou à estufa e empurrou a porta rangente.
O cheiro de terra úmida, musgo e ferrugem tomou o ar. Ela avançou com cuidado. No fundo da estufa, escondida entre vasos tombados, havia uma escada em espiral que levava a um alçapão.
Ela hesitou.
Mas subiu.
Lá em cima, uma abertura de madeira dava para o lado externo da propriedade — por trás da cerca de heras.
E lá estava ele.
De pé. Casaco escuro. Rosto meio oculto pela sombra.
Mas ela o reconheceu.
Ricardo.
Ele a observava com atenção, sem pressa.
— Você encontrou a trilha. — disse ele, baixo.
— E você soube como deixar a mensagem.
— Há sempre uma fresta onde a casa finge que ninguém olha.
Ela cruzou os braços.
— Por que está aqui? Isso vai te custar caro.
— Eu não vim por você. Vim pela verdade que você carrega.
Silêncio.
A chuva começava a voltar. Pingos suaves entre as folhas.
— A morte da sua mãe não foi um acidente. — ele disse. — E não foi apenas pelo testamento.
Eduarda o encarou.
— Então você sabe mais do que diz.
— Sei o suficiente para não confiar nos documentos públicos. E que o Dr. Jonas P. Leme está desaparecido desde que recebi a primeira pista sobre o caso. Ele fugiu.
Ela sentiu o mundo girar.
— Fugiu?
— Semana passada. Dois dias antes de eu mandar o bilhete. Ele estava sendo pressionado. Sabia demais.
Eduarda levou a mão à testa.
— Eles estão apagando os rastros.
Ricardo deu um passo à frente.
— Mas nem toda tinta cobre o sangue. Alguns quadros sangram por baixo da camada. Você sabe disso.
— Eu sangro por dentro desde que a enterraram.
Eles se olharam. Ali, sob a chuva e o ferro velho da estufa, havia algo frágil e pulsante.
— Eu não vim te salvar, Eduarda. — ele disse. — Mas quero que saiba que, se escolher lutar, eu fico.
— E se eu cair?
— Então eu caio junto.
Silêncio.
Ela desceu um degrau, ficando de frente para ele, a centímetros de distância.
— Então ouça o que vou dizer, Ricardo Silva:
A guerra começou.
E eu não vou parar até a verdade aparecer no jornal da manhã — com meu nome assinado no canto inferior.**
Ele assentiu.
— Então vamos pintar juntos. Mas desta vez... sem véu.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Ana Zélia
Una história de mistério e eu aqui ja ansiosa para o desenrolar de tudo.
2025-07-12
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