O amanhecer chegou cinza.
Na mansão, o aroma de café e flores frescas não conseguia disfarçar a tensão silenciosa que pairava desde as primeiras horas da madrugada.
Eduarda acordou cedo, embora mal tivesse dormido. A imagem do testamento ainda dançava por trás das pálpebras, e a assinatura de Helena — firme, elegante — parecia mais viva do que qualquer retrato da mãe espalhado pela casa.
O testamento estava ali. Real. Intocado.
Com ele, tudo que seus avós construíram voltava para ela. E só para ela. Nem uma linha mencionava Luana. Nem o pai. Nenhuma cláusula deixava dúvidas: Eduarda era a única herdeira legítima.
Mas a alegria era um fio que se partia fácil.
Quando voltou para o quarto, a câmera passou despercebida. O erro era pequeno, quase invisível, mas suficiente para desencadear a primeira retaliação.
Pouco depois das oito, um dos seguranças bateu à porta.
— A senhora Ana Cláudia deseja vê-la no escritório.
Eduarda sabia que não era um convite. Era uma convocação.
Vestiu-se com calma, penteou o cabelo e colocou sua máscara de sempre: a de fragilidade, de passividade, de “boazinha”. E desceu.
No escritório, a mãe a esperava em pé, ao lado da lareira apagada.
— Algum motivo especial para estar andando pela casa durante a madrugada? — perguntou, direta.
Eduarda manteve o olhar baixo.
— Tive um pesadelo. Caminhei um pouco para... aliviar a cabeça.
— Estranho. As câmeras mostram você entrando na suíte da sua mãe.
— A porta estava aberta — respondeu, com voz trêmula. — Eu não lembrava que estava trancada. Só... senti falta dela.
Ana Cláudia estreitou os olhos, mas não insistiu.
— Vou reforçar o controle. Pela sua segurança, é claro.
“Pela sua segurança.”
Era assim que eles falavam quando queriam justificar os limites, as grades, os remédios.
— Você ainda está instável, Eduarda. Sabe disso, não sabe?
— Sei — respondeu. E sorriu. Um sorriso triste, que ela já dominava com perfeição.
— Então, comporte-se.
No fim da manhã, Luana bateu à porta do ateliê.
— Você vai sair comigo hoje — disse, como quem ordena.
Eduarda a encarou.
— Sair?
— Preciso de uma acompanhante na visita à fundação de artes. Tem fotógrafos esperando, e é bom para a imagem de família. Você com aquele seu olhar perdido ajuda. Dá autenticidade à artista trágica que sou.
Eduarda quase riu. Mas assentiu.
Ser vista fora da casa era algo que não acontecia há meses. Mesmo que fosse uma encenação, poderia observar, explorar. Talvez até... experimentar a liberdade.
Elas chegaram à fundação às 13h em ponto. Um prédio moderno de concreto e vidro, com jardins geométricos e esculturas em tons metálicos.
Luana desceu do carro com o andar ensaiado de uma celebridade.
Eduarda, com os cabelos presos num coque simples e vestido bege, caminhava dois passos atrás, como uma sombra bem treinada.
Lá dentro, sorrisos, cumprimentos, flashes. Luana posava ao lado dos quadros, discorria sobre “influências expressionistas” e “as pinceladas intuitivas que refletem o feminino profundo da alma”.
Eduarda mal ouvia. Estava distante. Observava.
E foi ali, junto à janela lateral do segundo andar, que ela o viu.
Ele estava do lado de fora, encostado no corrimão do mirante que dava vista para o jardim. Alto, cabelo escuro desalinhado, camisa com as mangas dobradas até o antebraço. Observava uma escultura curva, como se realmente estivesse tentando entender algo invisível.
Eduarda não sabia por que ficou tão fixada nele.
Talvez fosse o modo como parecia alheio à ostentação. Ou a leveza com que mexia os dedos, como quem dedilha ideias no ar.
— Aquele ali é Ricardo Silva — disse uma voz atrás dela.
Era um dos assistentes da fundação.
— O nome me parece familiar.
— Filho do Emílio Silva, do grupo financeiro Aurora. Mas dizem que ele quer se afastar dos negócios da família. Anda investindo em arte independente.
— Independente? — Eduarda sorriu de lado. — Isso ainda existe?
— Para quem tem dinheiro, sim.
Eduarda observou Ricardo mais uma vez. Ele tirou uma foto com o celular e depois, como se sentisse o olhar dela, ergueu os olhos.
Os dois se encararam por um instante.
Ela desviou.
Mas rápido demais.
Quando olhou de novo, ele ainda estava ali, olhando para ela.
E então, sorriu.
Na volta para casa, Luana falava sobre os elogios que recebera, as novas parcerias, o convite para uma entrevista em Lisboa.
Eduarda apenas ouvia, olhando pela janela, os dedos tamborilando no colo.
Na cabeça dela, Ricardo ainda estava lá.
No mirante.
O homem que observava o mundo como se ele ainda pudesse ser redesenhado.
E pela primeira vez em muito tempo, ela sentiu algo novo: curiosidade.
Naquela noite, ao voltar ao quarto, Eduarda tirou do bolso um pequeno panfleto da exposição.
No verso, anotado à mão, algo que não estava ali antes.
"Às vezes, é a sombra que mostra de onde vem a luz."
— R.
Ela arregalou os olhos.
Olhou ao redor.
E soube: ele a viu. E não apenas com os olhos.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 22
Comments
Giselda Leandro
Que irmã nojenta
2025-07-12
0