Capítulo 4 — Duas Máscaras, Uma Guerra

Na manhã seguinte ao envio do e-mail, Eduarda não acordou como uma prisioneira. Acordou como uma jogadora.

No espelho, seu reflexo parecia mais ereto, os olhos menos perdidos, a respiração mais firme. Era estranho sentir isso depois de tantos anos: a sensação de não estar mais apenas sobrevivendo — mas tramando.

Vestiu uma blusa clara, saia abaixo dos joelhos e prendeu os cabelos em um coque frouxo. A máscara da “filha instável” ainda era necessária, mas por baixo dela, algo pulsava com outra frequência.

Havia uma diferença entre disfarce e submissão.

E ela já não era submissa.

Era uma ameaça esperando o momento de morder.

Durante o café da manhã, a família seguia o ritual habitual: Ana Cláudia cuidando da dieta equilibrada e da louça de porcelana, Frederico lendo o jornal impresso como se a verdade ainda estivesse em tinta, e Luana mexendo no celular enquanto contava, em voz alta, quantos likes sua última postagem com o "novo quadro" já havia rendido.

— Mais de 18 mil em uma hora. — comentou com ar triunfante. — O fundo do banco cultural de Portugal quer fazer uma mostra só minha.

Frederico sorriu com orgulho.

— Você está onde nossa marca precisa estar, filha.

— E Duda pode continuar criando à vontade, longe das pressões públicas. Isso é o melhor para todos. — Ana Cláudia acrescentou, como se estivesse ditando a lógica da paz mundial.

Eduarda manteve o olhar abaixado.

Mas em sua mente, o que ela ouvia era:

“Você finge que está doente, nós fingimos que te protegemos, e assim todos lucram.”

Ela cortou um pedaço da fruta e olhou fixamente para o pai.

— O senhor ainda tem acesso ao advogado da família, Dr. Cassiano?

Frederico ergueu os olhos por trás do jornal.

Silêncio.

— Por quê?

— Sonhei com a mamãe ontem. Ela falava sobre testamentos. Achei curioso.

Ana Cláudia pigarreou, desconfortável.

Luana riu, sem tirar os olhos da tela.

— Não comece com essas coisas, Duda. Isso te desestabiliza.

Eduarda deu um leve sorriso.

— Foi só um sonho. Nada demais.

Mas naquela manhã, Frederico ligaria discretamente para o advogado.

E Eduarda sabia disso.

Mais tarde, no ateliê, enquanto fingia trabalhar num fundo inacabado, ela ouviu um leve bater na porta. Era Bianca, a governanta da casa. Uma mulher de meia-idade, sempre discreta, mas observadora demais para passar despercebida.

— Trouxe o chá da tarde, senhorita.

Eduarda se virou, os olhos fixos nos dela.

— Bianca...

Você acredita em mentira contada tantas vezes que vira verdade?

A mulher hesitou, mas manteve a postura firme.

— Acredito que mentira repetida perde o sabor. A verdade, não. A gente sente o gosto dela, mesmo quando tenta engolir seco.

Eduarda observou em silêncio.

— A senhora já viu minha mãe pintar?

Bianca olhou para o quadro inacabado.

— Vi. Muito antes de a casa se tornar um museu de vaidades.

— Ela deixava a assinatura escondida em algum lugar, não deixava?

Bianca sorriu, sem sorrir.

— Como a senhorita faz agora?

O silêncio entre elas não era vazio. Era denso, carregado de códigos.

Eduarda deu um passo.

— Se um dia eu quiser sair... Não para fugir, mas para confrontar. A senhora me ajudaria?

Bianca não respondeu de imediato. Depois se aproximou, limpou o canto da mesa com o pano como se não dissesse nada importante, e sussurrou:

— Só ajudamos quem sabe aonde está indo.

— Eu sei.

— Então me avise com tempo. A casa ouve mais do que parece.

À noite, deitada com o celular antigo em mãos, Eduarda abriu a caixa de entrada.

Uma nova mensagem.

De: R.

Assunto: Luz sem palco

Às vezes, a sombra também se projeta no espelho. Mas ela não tem rosto até que alguém a reconheça.

Você pintou a dor de quem sabe. Eu vi. E não quero comprar a sua arte. Quero que você a assine.

Se você me deixar, posso ajudar a desmontar o palco onde te esconderam. Mas não com luz — com silêncio estratégico. Como você faz.

— R.

Ela leu três vezes. O coração batendo entre as linhas.

Era ele.

Não queria fama. Nem quadros.

Queria algo mais difícil: verdade.

Respondeu:

Os quadros só serão meus quando o nome estiver de volta. Mas o nome só voltará quando minha mãe puder descansar.

Isso não é sobre arte. É sobre desenterrar um crime emoldurado.

Se você aguentar segredos, posso te deixar entrar.

— E.

Do outro lado da cidade, Ricardo fechava o notebook com um sorriso contido.

Ao seu redor, livros de arte marginalizada, contratos de patrocínio interrompidos e recortes de jornal com matérias sobre o clã Oliveira.

Ele conhecia a história.

Sabia que Helena Ramos havia sido artista.

Sabia que havia morrido em circunstâncias nebulosas.

Sabia que a filha mais velha desaparecera do cenário público após isso.

E agora ela falava com ele — como um quadro que enfim começava a revelar o que escondia sob as camadas de tinta.

Na mansão, Eduarda olhou para a tela recém-pintada.

Era um retrato de uma mulher sentada diante de um espelho quebrado.

O rosto partido em reflexos diferentes.

Nenhum deles sorria.

No canto inferior, disfarçada entre os fragmentos, uma letra pequena:

H. R. O.

Helena Ramos Oliveira.

— A primeira assinatura verdadeira da casa em anos. — ela murmurou.

E pendurou o quadro na parede do ateliê. Não para exibição, mas como aviso.

A guerra silenciosa havia começado.

E ela já não lutava sozinha.

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Comments

Seledir ildefonso Martins

Seledir ildefonso Martins

Ela é muito esperta. Os escrúpulosos
estão tranquilos que nem percebe se

2025-07-12

0

Ana Zélia

Ana Zélia

Acho ela super inteligente.
tou amando essa história

2025-07-12

0

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