Na manhã seguinte ao envio do e-mail, Eduarda não acordou como uma prisioneira. Acordou como uma jogadora.
No espelho, seu reflexo parecia mais ereto, os olhos menos perdidos, a respiração mais firme. Era estranho sentir isso depois de tantos anos: a sensação de não estar mais apenas sobrevivendo — mas tramando.
Vestiu uma blusa clara, saia abaixo dos joelhos e prendeu os cabelos em um coque frouxo. A máscara da “filha instável” ainda era necessária, mas por baixo dela, algo pulsava com outra frequência.
Havia uma diferença entre disfarce e submissão.
E ela já não era submissa.
Era uma ameaça esperando o momento de morder.
Durante o café da manhã, a família seguia o ritual habitual: Ana Cláudia cuidando da dieta equilibrada e da louça de porcelana, Frederico lendo o jornal impresso como se a verdade ainda estivesse em tinta, e Luana mexendo no celular enquanto contava, em voz alta, quantos likes sua última postagem com o "novo quadro" já havia rendido.
— Mais de 18 mil em uma hora. — comentou com ar triunfante. — O fundo do banco cultural de Portugal quer fazer uma mostra só minha.
Frederico sorriu com orgulho.
— Você está onde nossa marca precisa estar, filha.
— E Duda pode continuar criando à vontade, longe das pressões públicas. Isso é o melhor para todos. — Ana Cláudia acrescentou, como se estivesse ditando a lógica da paz mundial.
Eduarda manteve o olhar abaixado.
Mas em sua mente, o que ela ouvia era:
“Você finge que está doente, nós fingimos que te protegemos, e assim todos lucram.”
Ela cortou um pedaço da fruta e olhou fixamente para o pai.
— O senhor ainda tem acesso ao advogado da família, Dr. Cassiano?
Frederico ergueu os olhos por trás do jornal.
Silêncio.
— Por quê?
— Sonhei com a mamãe ontem. Ela falava sobre testamentos. Achei curioso.
Ana Cláudia pigarreou, desconfortável.
Luana riu, sem tirar os olhos da tela.
— Não comece com essas coisas, Duda. Isso te desestabiliza.
Eduarda deu um leve sorriso.
— Foi só um sonho. Nada demais.
Mas naquela manhã, Frederico ligaria discretamente para o advogado.
E Eduarda sabia disso.
Mais tarde, no ateliê, enquanto fingia trabalhar num fundo inacabado, ela ouviu um leve bater na porta. Era Bianca, a governanta da casa. Uma mulher de meia-idade, sempre discreta, mas observadora demais para passar despercebida.
— Trouxe o chá da tarde, senhorita.
Eduarda se virou, os olhos fixos nos dela.
— Bianca...
Você acredita em mentira contada tantas vezes que vira verdade?
A mulher hesitou, mas manteve a postura firme.
— Acredito que mentira repetida perde o sabor. A verdade, não. A gente sente o gosto dela, mesmo quando tenta engolir seco.
Eduarda observou em silêncio.
— A senhora já viu minha mãe pintar?
Bianca olhou para o quadro inacabado.
— Vi. Muito antes de a casa se tornar um museu de vaidades.
— Ela deixava a assinatura escondida em algum lugar, não deixava?
Bianca sorriu, sem sorrir.
— Como a senhorita faz agora?
O silêncio entre elas não era vazio. Era denso, carregado de códigos.
Eduarda deu um passo.
— Se um dia eu quiser sair... Não para fugir, mas para confrontar. A senhora me ajudaria?
Bianca não respondeu de imediato. Depois se aproximou, limpou o canto da mesa com o pano como se não dissesse nada importante, e sussurrou:
— Só ajudamos quem sabe aonde está indo.
— Eu sei.
— Então me avise com tempo. A casa ouve mais do que parece.
À noite, deitada com o celular antigo em mãos, Eduarda abriu a caixa de entrada.
Uma nova mensagem.
De: R.
Assunto: Luz sem palco
Às vezes, a sombra também se projeta no espelho. Mas ela não tem rosto até que alguém a reconheça.
Você pintou a dor de quem sabe. Eu vi. E não quero comprar a sua arte. Quero que você a assine.
Se você me deixar, posso ajudar a desmontar o palco onde te esconderam. Mas não com luz — com silêncio estratégico. Como você faz.
— R.
Ela leu três vezes. O coração batendo entre as linhas.
Era ele.
Não queria fama. Nem quadros.
Queria algo mais difícil: verdade.
Respondeu:
Os quadros só serão meus quando o nome estiver de volta. Mas o nome só voltará quando minha mãe puder descansar.
Isso não é sobre arte. É sobre desenterrar um crime emoldurado.
Se você aguentar segredos, posso te deixar entrar.
— E.
Do outro lado da cidade, Ricardo fechava o notebook com um sorriso contido.
Ao seu redor, livros de arte marginalizada, contratos de patrocínio interrompidos e recortes de jornal com matérias sobre o clã Oliveira.
Ele conhecia a história.
Sabia que Helena Ramos havia sido artista.
Sabia que havia morrido em circunstâncias nebulosas.
Sabia que a filha mais velha desaparecera do cenário público após isso.
E agora ela falava com ele — como um quadro que enfim começava a revelar o que escondia sob as camadas de tinta.
Na mansão, Eduarda olhou para a tela recém-pintada.
Era um retrato de uma mulher sentada diante de um espelho quebrado.
O rosto partido em reflexos diferentes.
Nenhum deles sorria.
No canto inferior, disfarçada entre os fragmentos, uma letra pequena:
H. R. O.
Helena Ramos Oliveira.
— A primeira assinatura verdadeira da casa em anos. — ela murmurou.
E pendurou o quadro na parede do ateliê. Não para exibição, mas como aviso.
A guerra silenciosa havia começado.
E ela já não lutava sozinha.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
Seledir ildefonso Martins
Ela é muito esperta. Os escrúpulosos
estão tranquilos que nem percebe se
2025-07-12
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Ana Zélia
Acho ela super inteligente.
tou amando essa história
2025-07-12
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