Capítulo 3 — Sangue Seco em Tela

A chave ainda estava com ela.

Escondida no forro da bainha do vestido bege que usara no dia anterior. Aquela pequena peça dourada, que destrancava o quarto da mãe, agora pesava como se fosse feita de chumbo — não por seu valor material, mas pelo que ela abria: verdades.

Na madrugada seguinte ao passeio com Luana, Eduarda esperou novamente a casa mergulhar no silêncio noturno. Àquela altura, já sabia os passos do segurança que rondava os corredores, o momento exato em que o pai dormia e quando Ana Cláudia ativava os sensores externos antes de recolher-se.

Com a chave em mãos, atravessou a mansão sem ruídos. A cada passo, o coração batia forte — não de medo, mas de uma ansiedade antiga, quase esquecida: vontade de saber.

Ela destrancou a porta da suíte de Helena com mais confiança.

Já não era uma intrusa, pensava. Era a filha da dona daquele quarto.

Dessa vez, tinha um plano.

No fundo do armário, o cofre estava do mesmo jeito. Entre os documentos, havia recibos de transferências bancárias antigas, contratos, cartas, fotos. Mas o que realmente importava estava dentro de uma pasta de couro preto, etiquetada à mão: Testamento Helena Ramos Oliveira — 2004.

Eduarda sentou no chão, acendendo a luz do celular.

Abriu a pasta e começou a ler.

“Em pleno uso das minhas faculdades mentais e emocionais, deixo todos os meus bens, inclusive direitos sobre obras, patentes e coleções, à minha filha legítima, Eduarda Ramos Oliveira.”

A assinatura era clara.

Data: 17 de março de 2004.

Apenas dois meses antes da morte de Helena.

Atrás do documento, um anexo:

“Em caso de minha morte, desejo que Eduarda seja acompanhada por curadores de confiança e mantenha total liberdade sobre sua produção artística. Ninguém — repito, ninguém — poderá representar seu trabalho sem consentimento direto e assinado por ela.”

Eduarda fechou os olhos por um segundo.

A verdade era um soco no estômago. Tudo que viveu nos últimos anos — as restrições, a alienação, o roubo das obras — ia contra a última vontade de sua mãe.

Ao lado do testamento, havia uma carta. Escrita à mão. Dobrada três vezes.

Reconheceu a letra de Helena imediatamente.

“Duda, se você estiver lendo isso, é porque as coisas saíram do controle.”

“Eles não vão entender sua arte. Mas vão tentar usá-la.”

“Seja mais inteligente que eles. Use o silêncio como arma. Deixe que pensem que você é frágil. Artistas de verdade sempre foram subestimadas.”

“Não busque vingança. Busque justiça. E se encontrar alguém que veja você de verdade — mesmo sob o véu — não fuja.”

A letra tremia no final.

Como se Helena soubesse que estava em risco.

Eduarda dobrou a carta com cuidado. Não chorou.

Já não era tempo de lágrimas.

Na manhã seguinte, Luana entrou no ateliê com os olhos fixos no celular.

— Seu quadro novo viralizou. Postei sem dizer que era da nova série. As pessoas estão pirando.

Eduarda continuou pintando, silenciosa.

— Aliás, você parece... diferente. — Luana se aproximou. — Dormiu bem?

— Melhor do que nunca — respondeu, com voz mansa.

Luana a observou com desconfiança.

— Cuidado, Duda. Você sabe que o papai não gosta quando você se empolga demais. Ele prefere quando você está mais... quietinha.

Eduarda parou de pintar e olhou nos olhos da irmã.

— Eu sou uma boa atriz, Luana.

Luana arqueou as sobrancelhas.

— Como assim?

Eduarda sorriu.

— Nada. Vai querer que eu altere algo na tela?

Luana recuou, desconcertada.

Mais tarde, sozinha no quarto, Eduarda ligou o celular escondido que mantinha desligado dentro de um livro falso, no fundo de uma gaveta trancada. Era um aparelho antigo, sem rastreio. Só usava quando precisava escapar, planejar.

Pesquisou por “Ricardo Silva Aurora Investimentos”.

Milhares de resultados.

Mas um deles chamou atenção: uma reportagem em um blog de arte independente.

“Filho mais velho de Emílio Silva, Ricardo se afastou do grupo financeiro aos 24 anos. Criou um fundo voltado para artistas que não têm acesso a editais públicos ou galerias comerciais. Não aparece em eventos tradicionais. É conhecido por comprar quadros de autores anônimos e ajudá-los a emergir com identidade preservada.”

Aquilo era inesperado.

Alguém que usava o próprio poder... para dar nome a quem não tinha.

Por impulso, digitou:

“Às vezes, é a sombra que mostra de onde vem a luz.”

Clicou em buscar.

A frase retornou com uma única correspondência: um poema publicado em 2013, num blog desativado, assinado apenas como “R.”

No rodapé, um e-mail criptografado.

Ela não sabia ainda se era uma armadilha ou uma porta aberta.

Mas respondeu.

“Li seu poema numa parede que ninguém pintou. E vi você no mirante. Eu sou a sombra. E você me viu.”

Ela não usou nome. Nem assinatura.

Apenas E.

Enquanto isso, em um restaurante discreto no centro da cidade, Ricardo observava a tela do celular. Um novo e-mail em sua caixa. Sem título. Texto breve. Enigmático.

Ele releu três vezes.

E depois sorriu.

— Finalmente — murmurou, tomando um gole de vinho.

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Comments

Giselda Leandro

Giselda Leandro

Verdade e interessante que continue assim

2025-07-12

0

Ana Zélia

Ana Zélia

Comecei ler agora, 11/07/25
Tou achando interessante

2025-07-11

0

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