Capítulo 1: A Carta que Acendeu a Esperança
Clara acordou com o som suave de Lia balbuciando no berço. O relógio na mesinha de cabeceira marcava 6:45 da manhã, e a luz pálida do sol entrava pelas cortinas finas da janela. A casa, uma pequena construção de dois andares numa cidadezinha tranquila, parecia viva com os sons da filha, mas silenciosa demais sem Lucas. Ele já havia saído para o trabalho, como fazia todos os dias, deixando apenas o cheiro de seu café forte na cozinha. Clara esfregou os olhos, sentindo o peso da exaustão. Amava ser mãe, mas, às vezes, sentia falta de ser apenas Clara – a mulher que ria com Lucas até a barriga doer, que dançava com ele na sala sem motivo.
Levantou-se, vestindo um moletom velho e confortável. O espelho do quarto refletiu uma mulher de 38 anos, com cabelos castanhos presos num coque bagunçado e olheiras que contavam histórias de noites mal dormidas. “Você precisa de um banho, Clara”, murmurou para si mesma, mas sabia que não havia tempo. Lia precisava dela. Desceu as escadas, o piso de madeira rangendo sob seus pés descalços. Na cozinha, a cafeteira ainda estava quente. Lucas sempre deixava café pronto, um pequeno gesto que, mesmo na correria, fazia Clara sorrir.
Lia, com seus dois anos e cachinhos dourados, estava no berço, brincando com um ursinho de pelúcia. “Mamãe!”, exclamou, estendendo os bracinhos. Clara a pegou, sentindo o calor do corpinho pequeno contra o peito. “Bom dia, meu amor”, disse, beijando a testa da filha. Lia riu, e aquele som era como música, capaz de apagar, por um instante, qualquer cansaço. Mas, enquanto preparava a mamadeira, Clara sentiu um vazio familiar. Quando foi que ela e Lucas pararam de conversar? De se olhar nos olhos? A vida com Lia era uma bênção, mas também um redemoinho que engolia o tempo, a energia e, às vezes, o amor.
Sentada à mesa da cozinha, com Lia no colo, Clara olhou para a pilha de pratos na pia. Havia brinquedos espalhados pelo chão, um lembrete da bagunça alegre que a filha trazia. Lucas prometera voltar cedo hoje, sábado, mas ela não contava com isso. Ele trabalhava como gerente numa loja de materiais de construção, um emprego que exigia longas horas e paciência com clientes exigentes. Clara entendia – as contas não se pagavam sozinhas –, mas o silêncio entre eles crescia. Às vezes, trocavam apenas frases curtas: “Lia comeu?”, “Cheguei tarde, desculpa.” Onde estava o Lucas que escrevia bilhetes apaixonados e planejava viagens que nunca fizeram?
Decidiu que precisava de uma distração. “Hoje vamos organizar, Lia”, disse, mais para si mesma. A ideia era arrumar o sótão, um canto da casa que virou depósito de memórias esquecidas. Depois de dar o café da manhã a Lia e vesti-la com um macacãozinho rosa, Clara a levou para a sala, onde montou um cercadinho cheio de brinquedos. “Fica aí, meu anjo”, disse, acariciando os cachinhos da filha. Lia riu, já distraída com um livro de figuras.
Subir ao sótão era como entrar num museu particular. O ar cheirava a poeira e madeira antiga. Caixas empilhadas guardavam pedaços do passado: álbuns de fotos, enfeites de Natal, roupas que não serviam mais. Clara abriu uma janela pequena para deixar o ar circular, e a luz do sol revelou partículas de poeira dançando. Começou a mexer nas caixas, separando o que podia doar. Encontrou um vestido de festa azul, o que usara no primeiro encontro com Lucas, dez anos atrás. Sorriu, lembrando como ele elogiou seus olhos naquela noite. “Você brilha, Clara”, ele disse. Quando foi que ele parou de dizer coisas assim?
Então, numa caixa menor, com “Lucas e Clara” escrito em marcador preto, encontrou algo que fez seu coração parar. Era uma pilha de papéis amarelados: ingressos de cinema, fotos de viagens, bilhetes trocados quando namoravam. No fundo, uma carta dobrada, com a caligrafia cuidadosa de Lucas. Clara sentou no chão empoeirado, as mãos tremendo. Abriu a carta e leu:
“Clara, minha Clara,
Escrevo isso na noite antes do nosso casamento. Estou tão nervoso que mal durmo, mas é um nervosismo bom, porque sei que é com você que quero passar todos os meus dias. Prometo te amar todos os dias, mesmo quando a vida complicar. Prometo te fazer rir, te abraçar quando chorar, e nunca deixar você se sentir sozinha. Você é meu lar, sempre será.
Com todo meu amor,
Lucas”
Lágrimas rolaram pelo rosto de Clara. Ela segurou a carta contra o peito, como se pudesse abraçar o Lucas que a escreveu. Aquele Lucas ainda existia? Ou a vida – as contas, as fraldas, as noites exaustivas – o tinha apagado? A carta era um lembrete de quem eles foram: dois jovens apaixonados, sonhando com uma vida juntos. Agora, eram pais, parceiros, mas também estranhos em alguns momentos.
Clara guardou a carta no bolso do moletom. Olhou pela janela do sótão, vendo o jardim onde Lia brincava nos fins de semana. O balanço que Lucas montara ainda estava lá, esperando por risadas. “Nós podemos voltar a ser nós”, sussurrou. A ideia de reacender o amor parecia assustadora, mas também acendia uma faísca de esperança. Hoje, quando Lucas chegasse, ela falaria com ele. Não podia esperar mais.
Desceu as escadas, ainda segurando a carta no bolso. Lia estava no cercadinho, cantando uma musiquinha sem sentido. Clara sorriu, ajoelhando-se para brincar com a filha. “Você é meu tudo, sabia?”, disse, bagunçando os cachinhos. Mas, no fundo, sabia que Lia não era o único “tudo”. Lucas também era, mesmo que às vezes ela esquecesse.
Na cozinha, Clara começou a preparar o almoço. Decidiu fazer algo especial: o frango assado que Lucas amava, com batatas e ervas. Talvez fosse um começo. Enquanto cortava as batatas, pensou em como abordar Lucas. Não queria parecer acusadora – “Por que você nunca está aqui?” – nem fraca – “Sinto tanto sua falta”. Queria ser honesta. Queria dizer: “Eu te amo, mas estamos nos perdendo.” A carta no bolso parecia pulsar, como um lembrete.
Lembrou-se de sua mãe, Sofia, que sempre dava conselhos com um tom meio crítico, mas sábio. Sofia morava a poucos quarteirões, numa casa cheia de plantas e fotos antigas. “O amor precisa de tempo, Clara”, ela dizia. “Você e Lucas precisam de momentos só de vocês.” Talvez Sofia pudesse ficar com Lia à noite, para que Clara e Lucas tivessem um jantar a sós. A ideia a animou. Pegou o telefone e ligou para a mãe.
“Oi, mãe”, disse, quando Sofia atendeu. “Você pode ficar com a Lia hoje à noite? Quero fazer algo especial para o Lucas.”
Sofia riu, do jeito que fazia quando sabia mais do que dizia. “Finalmente, Clara. Claro que fico com minha netinha. Vocês dois precisam conversar. Faz tempo que não vejo aquele brilho nos seus olhos.”
Clara sorriu, aliviada. “Obrigada, mãe. É só por algumas horas.”
“Não se apresse. O amor leva tempo”, disse Sofia, antes de desligar.
Quando Lucas chegou, por volta do meio-dia, Clara sentiu o coração acelerar. Ele estava com a camisa amarrotada, o cabelo bagunçado, mas ainda era o homem que a fazia sorrir só de entrar na sala. “Oi, pequena!”, disse, pegando Lia do cercadinho e girando-a no ar. A menina riu alto, e Clara sentiu uma pontada de ciúme – não de Lia, mas do tempo que Lucas passava com ela, tão natural, enquanto com Clara parecia hesitante.
“Oi”, disse Clara, tentando soar leve. Lucas olhou para ela, com aquele sorriso cansado que se tornara comum. “Tudo bem?”, perguntou.
“Tudo”, respondeu Clara, hesitando. Queria contar sobre a carta, mas o momento não parecia certo. “Fiz seu frango favorito para o almoço.”
Lucas ergueu as sobrancelhas, surpreso. “Sério? Que ocasião especial é essa?”
Clara riu, um som nervoso. “Nada especial. Só... achei que seria bom.”
Enquanto almoçavam, Clara observava Lucas. Ele brincava com Lia, fazendo caretas e contando histórias bobas sobre o trabalho. Por um instante, ela viu o Lucas da carta: o homem que a fazia rir, que segurava sua mão em silêncio. Mas também viu o cansaço nos olhos dele, o peso de um dia longo. Será que ele sentia o mesmo vazio que ela?
“Lia vai ficar com a minha mãe hoje à noite”, disse Clara, quase sem pensar. “Achei que podíamos conversar. Só nós dois.”
Lucas parou, a colher no ar. “Conversar?”, perguntou, com um tom que misturava curiosidade e cautela. “Sobre o quê?”
Clara tocou a carta no bolso, sentindo o papel amassado. “Sobre nós”, disse, com um sorriso tímido. “Sobre quem éramos. E quem ainda podemos ser.”
Lucas a encarou, como se tentasse decifrar suas palavras. “Tá bem”, disse, finalmente, com um meio sorriso. “Vamos conversar.”
Clara sentiu um alívio misturado com medo. E se ele não quisesse o mesmo? E se a carta fosse só um eco de um passado que não voltava? Mas, olhando para Lia, que ria com purê de batata no rosto, e para Lucas, que ainda a fazia sentir borboletas no estômago, Clara soube que valia a pena tentar. A carta no bolso era mais do que palavras – era uma promessa. E ela estava pronta para lutar por ela.
O resto do dia passou num borrão. Clara terminou o almoço, arrumou a casa e preparou Lia para ir à casa de Sofia. Quando a mãe chegou, com seu jeito caloroso e um pouco intrometido, Clara sentiu um conforto familiar. “Você está diferente hoje”, disse Sofia, enquanto pegava Lia no colo. “Tem um brilho nos olhos.”
“É só uma carta velha, mãe”, respondeu Clara, rindo. Mas sabia que era mais do que isso.
Depois que Sofia saiu com Lia, Clara tomou um banho quente, vestiu uma blusa que Lucas sempre elogiava e arrumou a mesa da sala com velas que não usava há anos. O frango assado estava no forno, enchendo a casa com um aroma acolhedor. Quando Lucas voltou do banho, com uma camiseta limpa e o cabelo ainda molhado, ele parou na porta da sala, surpreso.
“Clara, o que é isso tudo?”, perguntou, com um sorriso que parecia genuíno pela primeira vez em semanas.
“Quero que a gente se lembre de quem somos”, disse Clara, sentindo o coração disparar. “Senta. Vamos jantar.”
Enquanto servia o frango, Clara sentiu a carta no bolso do moletom, ainda guardada. Não era o momento de mostrá-la – ainda não. Mas, naquela noite, entre risadas tímidas e olhares que diziam mais do que palavras, Clara sentiu que estavam dando o primeiro passo. O amor ainda estava lá, escondido sob a poeira da rotina. E ela estava determinada a encontrá-lo.
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Atualizado até capítulo 39
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