Testes e Feridas
O tempo dentro daquele quarto parecia não existir.
A luz era sempre a mesma.
A temperatura nunca mudava.
E o som... só vinha de passos distantes, vozes abafadas ou do zumbido fraco da câmera em funcionamento.
Aoi estava ali. Sentado. De novo. Ainda de camisa branca, suada, com a mesma expressão de ontem. Não comia há mais de 24 horas.
Ren observava tudo pelas câmeras.
E nada no comportamento daquele garoto seguia os padrões que ele conhecia.
[outro cômodo da casa | Ren diante das telas de vigilância]
Ren está sentado, pernas abertas, cigarro aceso entre os dedos. A tela mostra Aoi em tempo real.
Ren
Tá tentando se matar pela fome ou pela apatia?
Ele dá uma tragada longa e solta a fumaça devagar, os olhos fixos no corpo frágil encolhido na tela.
Ren
Você é um enigma. E eu odeio enigmas.
Ren
Mas também não consigo deixar passar sem decifrar.
Quarto de Aoi | fim da tarde
Aoi se levanta pela primeira vez. Caminha devagar até a parede, toca nela com a ponta dos dedos, como se estivesse conferindo se aquilo é real.
Ele solta um suspiro baixo, pressiona a lateral da cintura e faz uma leve careta, um incômodo. A camisa cola na pele onde a cicatriz mal curada pulsa. Mas ele não tira, não expõe. Apenas suporta.
Ele sente dor. Mas não a mostra.
Porque mostrar fraqueza… era sempre punido.
Dessa vez, ele entra sem avisar. Sem comida. Sem fala de efeito. Só o olhar fixo.
Aoi nem se vira. Continua de pé, encostado na parede, com os ombros tensos.
Ren
Tá vivo. Isso já é um avanço.
Ren
*Sorri de lado*
Claro que não. Você é do tipo que dorme com um olho aberto, né?
Aoi não confirma, mas também não nega.
Ren
Sabe o que me irrita em você? Esse silêncio. Ele não é submisso. Não é medo. É outra coisa.
Ren
É como se você me olhasse por dentro. Como se soubesse o que eu sou.
Aoi se vira devagar, e pela primeira vez o encara direto.
Aoi
Eu já vi homens como você.
Ren
Você nunca viu ninguém como eu.
Os dois ficam em silêncio. o ar no quarto pesa. o olhar de Ren desce sutilmente pelo corpo de Aoi, não com desejo, mas com uma curiosidade quase clínica.
Aoi percebe. E recua um passo.
Ren
Tá escondendo alguma coisa?
Ren dá um passo à frente. Os dois estão agora a poucos centímetros um do outro.
Ren
Mas tudo bem. Ainda não tô com pressa.
Ele passa por Aoi, devagar, e sai do quarto sem dizer mais nada. O cheiro do cigarro dele fica no ar.
Ren não falou nada quando abriu a porta.
Só fez sinal com a cabeça.
E Aoi, mesmo confuso, se levantou.
Como um prisioneiro obediente, mas nunca realmente submisso.
Eles caminharam em silêncio pelo corredor estreito da casa. Aoi descalço, passos leves. Ren atrás, pesado, firme. Um predador.
O novo quarto era maior. Um colchão decente, uma janela trancada, lençóis escuros. A luz ali era mais suave, mas o ar… continuava denso.
Ren
Achei que merecia algo mais confortável.
Ren
Você tá se comportando bem. Até demais.
Aoi entra. Não agradece. Apenas observa. Há um espelho no canto. Grande. Estranhamente limpo. Mas ele sente que há algo atrás dele.
A câmera agora estava oculta.
O espelho… era falso.
Ren queria mais do que vigilância. Queria assistir. Sentir.
Possuir.
Ren fecha a porta atrás de si.
Ren
Vai ficar de pé aí o dia todo?
Aoi se senta na beira da cama. Ainda calado.
Ren
Sabe o que me irrita em você? Esse jeito vazio.
Ren
Parece que eu tô tocando vidro.
Ren
Hoje eu quero ver até onde esse vidro aguenta.
Ren dá dois passos à frente. Está a um palmo de Aoi.
Aoi sente o calor. O cheiro de cigarro, couro e perfume amargo.
Ren encosta dois dedos no queixo de Aoi, obrigando-o a levantar o rosto. Aoi não resiste. Mas seus olhos não brilham. Não imploram. Só… aceitam.
E isso era o pior tipo de resposta.
Ren solta um riso abafado e dá um leve tapa no rosto dele | não forte, só o bastante pra marcar presença.
Ren
Tá vendo? Nem isso mexe com você, ou te deixa extremamente apavorado.
Ren
Então vamos ver o que te quebra de verdade.
Ele recua um passo. Em silêncio, tira a própria camisa.
O corpo dele é marcado. Ombros largos, cicatrizes antigas nas costelas, pele firme e quente. Ele joga a camisa sobre a cadeira e se aproxima de novo.
Ren
E se você não me parar... vou fazer mais.
Aoi não responde. Mas os ombros encolhem levemente. O corpo fala o que a boca não pode.
Ren se ajoelha na frente dele. As mãos sobem pelas pernas de Aoi até alcançar a barra da camisa branca.
Lentamente, começa a puxá-la para cima.
Ren
*Sussurra*
Vai dizer que tem medo agora?
Uma cicatriz larga, ainda avermelhada, atravessando parte da cintura de Aoi.
Profunda. Mal curada.
Viva.
Ren congela. As mãos ainda seguram a barra da camisa, mas ele não puxa mais.
Os olhos dele descem, fixos na ferida. Uma respiração longa escapa de seus lábios.
Aoi desvia o olhar. Pela primeira vez, ele tenta recuar. Devagar. Mas com o corpo tenso como um animal acuado.
Aoi não responde. Mas os olhos brilham com algo entre medo e desespero contido.
Ren
Isso não foi acidente.
Ele solta a camisa de Aoi. Se levanta devagar, sem encará-lo mais. Pega sua própria camisa de volta. O clima mudou.
Ren
Mais cedo ou mais tarde.
Ele caminha até a porta. Antes de sair, olha por cima do ombro.
Ren
Eu sei que tem feridas aí que não fui eu que causei.
Ren
Tem alguém antes de mim que destruiu a sua confiança, a sua paz.
Ren
E agora eu quero entender de onde veio essa dor que você carrega.
Ren
quero saber quem te quebrou.
E então, ele fecha a porta.
Aoi ficou ali, imóvel.
O peito subia e descia devagar.
A cicatriz ardia. Mas não era a pele que mais sangrava.
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