A mochila pesava mais pelo cansaço do que pelo que havia dentro.
Doía cada parte do corpo, as marcas, os hematomas, o sono interrompido, o medo constante. Mas nada disso podia transparecer. Se eu erguesse a cabeça, alguém veria meu rosto. E isso era o fim, esses eventos eram constantes e meninas que não transpareciam beleza e elegância não participavam.
Desci do carro com Fernanda. Ela me lançou um olhar rápido, como se soubesse que eu ia desabar, mas não disse nada. Somente seguiu na frente, falando com a equipe. Eu a segui, em silêncio, tentando desaparecer dentro de mim.
A casa era linda. Gigantesca. Parecia de novela.
E logo ali, na entrada... um homem.
Alto, sem camisa. Postura firme. O tipo de homem que todos obedecem sem saber o porquê. Quando o vi, algo me gelou por dentro. Era ele. O mesmo olhar que Fernanda comentou no carro. O mesmo que me fez abaixar os olhos.
Meu instinto foi imediato: cabeça baixa. Corpo retraído.
Não podia chamar atenção, homens não querem meninas como eu, e já basta o que Matheo faz comigo.
Fomos levadas a um dormitório improvisado no andar de baixo. Um espaço organizado com beliches e colchonetes para as funcionárias passarem a noite. A orientação era clara: banho, uniforme, cabelo preso, nada de celular. O evento exigia foco.
Começamos a trabalhar naquela noite mesmo, a decoração do chá já estava pronta, era só a parte de comidas e serviços.
Era tudo tão… impecável.
Balões em tons pastéis. Laços de cetim. Arranjos florais delicados com cheirinho de lavanda.
Tons de rosa e azul por todo lado. Tudo brilhava. Tudo parecia feito para o mundo perfeito que não era o meu.
Tudo parecia perfeito demais. E eu... deslocada demais.
— Isso aqui tá parecendo um sonho — comentei com Fernanda, tentando esconder o cansaço da minha voz.
Ela olhou ao redor, com aquele olhar esperto dela, meio debochado, meio encantado.
— Não é sonho não, amiga. É realidade de bilionário. Eles são tipo... outra espécie. Essa festa deve tá custando mais do que qualquer coisa que eu vou ganhar em dez anos.
Eu ri, de nervoso.
— Essas crianças vão ter mais coisa no berço do que eu já tive na vida toda.
— E a gente aqui dobrando guardanapo — Fernanda disse rindo também, e balançou a cabeça. — Mas é isso, né? Nosso trabalho é fazer tudo bonito... e sair pela porta dos fundos depois.
Antes que eu pudesse responder, uma mulher entrou no salão. Linda, grávida, com uma aura doce. Ao lado dela, duas outras, levando bandejas com comida. Ela sorriu. Sério. Sorriu como se visse a gente como pessoas.
— Boa tarde, meninas! — disse animada. — A gente trouxe uns lanchinhos. Ninguém merece trabalhar com fome.
Eu congelei. Era a dona da casa. Mirella. A tal Mirella.
— Obrigada por estarem aqui — ela continuou, com um tom tão sincero que me deu vontade de chorar. — Amanhã é um dia especial, e sei que vocês estão fazendo acontecer com muito carinho. Então... obrigada de verdade.
Fizemos uma pequena fila. Pegamos os copinhos de suco, os pães, os bolinhos. E cada uma recebeu dela um olhar, um sorriso. Como se importasse.
Quando ela saiu, ainda encantando o ambiente com aquele jeito leve, algumas meninas cochicharam.
— Nossa, eu jurava que ela fosse metida — comentou uma.
— E ela é um doce! Tão simples...
Fernanda me cutucou com o cotovelo.
— Viu só? Até aqui tem gente que presta.
Assenti, ainda com o gosto do suco fresco na boca e o peso do mundo nas costas. Mas, por alguns minutos, ali, cercada de flores, tecidos delicados e sorrisos verdadeiros... foi como se eu existisse de novo.
Mesmo que só um pouco.
Eu me mantinha ocupada dobrando guardanapos, organizando caixas até os dedos doerem. Não queria pensar. Porque pensar me levava de volta para casa. Para o cheiro azedo do quarto. Para o grito abafado do meu irmão. Para o toque nojento de Matheo.
Dormimos tarde. Acordamos cedo.
No dia seguinte, as mulheres da casa circulavam sorridentes, as barrigas cobertas por vestidos elegantes, os sorrisos cheios de paz. Eu tentava não olhar ninguém nos olhos. Me escondia atrás da bandeja, servindo sucos, docinhos, cafés.
E então o vi de novo.
O mesmo homem, não tinha certeza, mas algo me dizia que era o tal Ricco.
Aquele homem.
Parecia me seguir com o olhar. Ou talvez fosse coisa da minha cabeça. Mas a sensação era forte demais. Sentia meu corpo encolher cada vez que ele estava por perto. E pior... sentia algo mais. Algo inexplicável. Não era medo. Era… calor. Ameaça. Proteção. Tudo misturado. Tudo errado.
Servi a mesa onde ele estava. Duas vezes. Três. Quatro.
Sentia como se ele me atravessasse com os olhos.
Comecei a suar. O calor me invadia como uma febre. Meus pés doíam. A cabeça latejava. E o estômago... vazio. Eu não tinha comido. Não queria sentar à mesa com as outras. E agora… meu corpo estava cobrando.
“Deus, por favor… não aqui. Não agora. Não me deixa cair.”
Corri até a cozinha.
Sentei no banco mais próximo antes que o chão me puxasse. Apoiava os cotovelos na mesa, a cabeça entre as mãos.
Fernanda apareceu, os olhos arregalados.
— Ana! Você não pode parar agora! Eles estão de olho! São os donos da festa, você quer ser dispensada? Quer perder a chance de continuar indo aos eventos?
— Só preciso de um minuto… — murmurei, tentando respirar. O ar parecia não entrar direito.
— Não temos um minuto. Levanta. Respira. Vai servir os doces. Você consegue.
Eu balancei a cabeça. Me forcei a ficar de pé. Lavei o rosto com água gelada, tomei um copo às pressas.
E fui.
De novo.
Mais uma bandeja. Mais uma rodada de doces e sucos. O salão parecia maior do que antes, mais brilhante, mais distante. As vozes ecoavam em volta como dentro d’água.
Meus passos falharam. Os dedos escorregaram da bandeja.
A visão escureceu nas bordas.
Uma vertigem me atingiu como um golpe invisível.
Minhas pernas cederam.
Tudo ficou lento. As flores tremulavam. A música sumia.
E então…
Eu caí.
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Atualizado até capítulo 36
Comments
Rafaela Braga
to apaixonada pela sua história
2025-07-02
3
Sueli Costa
tô amando essa história 😃😍
2025-07-02
1
Thaliaa Vieira
E.....Uauuuuu 💨💨👀
2025-07-04
0